Actas


Índice:

X Colóquio de Outono CEHUM
Comemorativo das Vanguardas


VI Congresso Nacional APLC


Universidade do Minho
6, 7, 8 de Novembro de 2008


*As conferências plenárias foram publicadas na Revista Diacrítica 24.3 (2010) "Dossier Literatura Comparada - Cumplicidades Comparatistas: Origens / Influências / Resistências" [PDF]



Introdução
Cumplicidades Comparatistas:
Origens/Influências/Resistências

A comemoração do centenário das Vanguardas históricas, e particularmente a do Futurismo cujo primeiro Manifesto, assinado por F.T. Marinetti, seria publicado no jornal “Le Figaro”, em Paris, em Fevereiro de 1909, deu o mote ao tema do X Colóquio de Outono organizado pelo Centro de Estudos Humanísticos, realizado em simultâneo com a VI edição do Congresso nacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, que, pela primeira vez, teve lugar na Universidade do Minho, entre 6 e 8 de Novembro de 2008.

É sobejamente conhecido o facto de o movimento futurista, ainda hoje estética controversa, ter sido o primeiro dos muitos “-ismos” que se sucederam no primeiro quartel do século XX, aliando a actividade provocatória à insurreição da palavra, a exuberância da “performance” artística e o experimentalismo mais ousado, à política mais conservadora.

“Energia/movimento/velocidade” são geralmente considerados os três vectores fulcrais desta estética, agindo em sintonia e espraiando-se intempestivamente pelas mais variadas artes; explorando todas as formas e veículos estéticos – a literatura, a pintura, a fotografia, a escultura, a cenografia, até ao design urbano e comercial; rompendo fronteiras e irrompendo no discurso “nostálgico” da “arte do passado”, qual “bofetada no gosto público”, em expressão cunhada pelos Cubo-futuristas russos. Tudo isto num cenário que antecipa a 1ª Grande Guerra e que, de modo pungente, contextualiza este discurso bélico e beligerante: o troar da voz de Marinetti através de toda a Europa, a Blast de Ezra Pound e Wyndham Lewis em Inglaterra, a poesia de Mayakovsky na Rússia, os Calligrammes de Apollinaire, a intervenção estética de Almada Negreiros e Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, Amadeo de Sousa Cardoso e Santa-Rita Pintor, entre outros, em Portugal; de Orpheu e do Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX, ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, no Brasil.

Um dos objectivos centrais deste congresso foi, assim, perspectivar, em pleno século XXI, o alcance deste diálogo fecundo entre as diferentes linguagens artísticas, desenvolvido pelas vanguardas artísticas do início do século XX, reflectindo simultaneamente sobre esse “espaço nómada” do saber que constitui a literatura comparada num sentido lato , tendo em conta a problematização da sua característica amplitude de visão e da sua peculiar metodologia, fundamentada no confronto e não na homogeneidade, na análise das tensões, das diferenças e das resistências, em suma, no diálogo interlinguístico e intercultural dos povos.

A grande adesão a esta reflexão, tanto dos membros da APLC e do CEHUM como de um grande número de investigadores e especialistas de diversos países (Inglaterra, França, Suíça, Alemanha, Brasil e Estados Unidos) foi bem demonstrativa da fecundidade da literatura comparada e do carácter múltiplo e transversal das cumplicidades comparatistas, capazes de pensar criativamente e por diversas formas os desafios da globalização económica e cultural, o multiculturalismo, as transformações e questionamentos actuais, tanto da literatura e das artes em geral, como dos discursos instalados, dos paradigmas críticos e das fronteiras disciplinares.

A presente publicação online das Actas deste Colóquio reúne os textos de um vasto número das conferências plenárias, semi-plenárias e sessões temáticas que tiveram lugar, percorrendo as questões essenciais abordadas ao longo destes três dias, as quais articularam os debates sobre o comparativismo e sobre as vanguardas com os estudos interartes, pós-coloniais, os estudos de género ou os estudos de tradução, numa reflexão sistematicamente marcada por um olhar integrador e consciente do carácter transversal e múltiplo das práticas artísticas, particularmente no que se refere à literatura.

Na conferência de abertura – “La notion de l’influence et la mémoire (inter)culturelle” – Manfred Schmeling interroga a noção de influência tal como vem sendo utilizada nos estudos literários desde o século XIX, e salienta o papel da literatura comparada no aprofundamento deste conceito a partir do século XX, o que levaria à introdução de diferentes perspectivas na abordagem do texto literário, mais rigorosas e abrangentes, assim como mais conscientes da complexidade do fenómeno literário – como é o caso dos estudos sobre a intertextualidade ou a memória cultural, ou os estudos de recepção. Analisando o carácter discursivo e construído de noções como memória e cultura, M.Schmeling distingue a sua utilização pela literatura comparada da que é feita pelos estudos culturais, sublinhando a complexidade e a especificidade destes conceitos no que se refere ao texto literário, conceitos que funcionam simultaneamente como “acumuladores” e como “geradores” de significados culturais, transformando a influência num processo complexo e dinâmico de conservação e de produção cultural.

Em “Comparative Literature and Translation Studies: historical breaks and continuing debates: can the past teach us something about the future?”, Lucia Boldrini desenvolve uma reflexão crítica sobre a literatura comparada, desta vez nas suas relações com os estudos de tradução. Defendendo a necessidade de uma consciência histórica para os debates contemporâneos sobre a literatura comparada num mundo globalizado, dividido entre a tendência para o monolinguismo (o inglês global) e a necessidade de traduzir, L.Boldrini estuda a heterogeneidade e a complexidade que desde a Idade Média recobre a ideia de “latim como língua franca”, salientando o comparatismo e a tradução como dois gestos incontornáveis no desenvolvimento histórico das diferentes línguas nacionais, e reafirmando o seu carácter historicamente problemático através da análise do binómio medieval traductio studii e traductio imperii.

Em “Un comentario sobre el concepto de Vanguarda”, é também uma “mise au point” conceptual o que realiza Eduardo Subirats, ao salientar o carácter contraditório e extremamente complexo do conceito de “vanguarda”, situando-o historicamente tal como foi definido desde o fim do século XIX, como uma prática com objectivos essencialmente de ruptura e destruição da experiência artística, das memórias culturais e das formas de vida a elas ligadas (conduzindo na maior parte dos casos a uma perspectiva totalitarista) e distinguindo as práticas e as perspectivas dos artistas do início do século XX, como Schoenberg, Kandinski, Klee, Pessoa, Kafka e muitos outros, que, não se reconhecendo no conceito de vanguarda, integraram, na sua procura de novos modos de expressão artística, as influências do passado com a interrogação da contemporaneidade e a afirmação da autonomia da obra de arte.

As questões levantadas nestas conferências estão presentes de diversos modos numa grande parte das restantes intervenções do congresso, tanto as que se dedicam a problemáticas mais especificamente literárias como as que estudam fenómenos interartísticos, nomeadamente, mas não exclusivamente, no que se refere às vanguardas artísticas do século XX.

Em “Une seconde musique du hasard: Georges Perec et Paul Auster”, Jean-Luc Joly apresenta uma análise intertextual das obras de Perec e Auster, integrada num estudo mais alargado sobre a recepção da obra de Perec em diversos escritores e artistas contemporâneos, como Sophie Calle ou Christian Boltanski, destacando afinidades temáticas (que designa por “contraintes existentielles”) e diálogos (inter)textuais e existenciais.

Numa perspectiva pós-colonial, João Ferreira Duarte apresenta o romance Things fall apart de Chinua Achebe (1958) enquanto objecto transcultural, considerando a própria forma do romance como uma apropriação dos princípios europeus reinventados no contexto histórico dos meados dos anos 50 em África, com o objectivo de expor a resistência e identidade dos dominados, através do sincretismo, do hibridismo e da construção de um aparelho estilístico caracterizado pelo realismo e o dialogismo (“The Narrator in the contact zone: Transculturation and Dialogism in Things fall apart”).

É também sobre literatura africana o texto de Bernard McGuirk que, a propósito de O vendedor de passados, destaca a especificidade da perspectiva pós-colonial de J.E. Agualusa, analisando a natureza controversa de um texto que confronta os legados do poder colonial português de um modo não imediatamente subsumível à rubrica do pós-colonial, colocando questões muito pertinentes para a realidade pós-colonial do hemisfério sul.

A intervenção de Paulo de Medeiros, por seu lado, analisa a condição “pós-imperial” das sociedades europeias, sublinhando a persistência dos antigos princípios nacionalistas e capitalistas na Europa pós-colonial e pós-moderna e discute, através de vários exemplos de romances contemporâneos, o papel da literatura como meio privilegiado de re-desenhar a memória cultural, problematizando os modos como as sociedades se definem e construindo representações e relações alternativas. (“Ghosts and Hosts: Inheritance and the Postimperial Condition”).

Em “Entre-culturas: a vanguarda entre o Brasil e a Europa”, K. David Jackson estuda o carácter híbrido, “entre-culturas”, do modernismo brasileiro dos anos 30, “entre o salão e a selva”, marcado pela dinâmica entre a cultura brasileira e a cultura europeia e por um nacionalismo de carácter transcultural, resultado da fusão criativa de diferentes realidades e linguagens culturais.

Viviana Bosi, em “Artes plásticas e poesia nos anos 70 no Brasil”, parte das polémicas entre artistas e críticos acerca de uma exposição de Laura Vinci, em 2007, para a análise do movimento “anti-arte” do Brasil dos anos 70, comparando a abordagem das vanguardas artísticas dos anos 70 com as interrogações das manifestações artísticas do século XXI, umas e outras fundadas “numa fissura que penetra as formas simbólicas, inconciliável com elas, mas que ainda assim precisa ser incorporada em tensão não resolvida”.

É também sobre o tensional, desta vez pensado a partir do binómio leveza/ peso – enquanto metáfora da modernidade, que privilegia a leveza, a mobilidade, a instabilidade, a velocidade, o quebrar de fronteiras, etc., por oposição ao peso da tradição e da imutabilidade – que se debruça Isabel Capeloa Gil (“Heaviness and the modernist aesthetics of movement”). Através do estudo do funcionamento deste binómio na “mais leve das arte performativas, a dança”, articulado com as reflexões de filósofos e poetas da modernidade e com as manifestações desta metáfora na fotografia e na pintura, I.Capeloa Gil analisa a tensão leveza/ peso num bailado de Almada Negreiros de 1918 (“A princesa dos sapatos de ferro”) e na produção contemporânea do “Sacre du Printemps”, de Heddy Maalem, em 2004.

A estrutura desta publicação online respeita a composição e organização temática das sessões que tiveram lugar neste Congresso, ordenadas do seguinte modo: Comparativismo; Vanguardas; Interartes; Estudos de Género; Estudos de Tradução; Estudos Pós-Coloniais; Literatura de Viagens; NELLPE (grupo de pesquisa).

Esperamos deste modo que esta publicação possa cabalmente dar conta do fértil debate intelectual havido em torno das questões do Comparativismo e, tal como o título do nosso Congresso sugeria, amplamente dar a ouvir a natureza dialogante e diversa das “Cumplicidades Comparatistas” hoje.


Em nome da Comissão Organizadora, os nossos agradecimentos a todos quantos nos deram a honra de participar neste evento e a todos quantos nos ajudaram a concretizá-lo.



Universidade do Minho, Janeiro de 2010

Ana Gabriela Macedo
Maria Eduarda Keating
Carlos Mendes de Sousa
Eunice Ribeiro
Orlando Grossegesse
Margarida Pereira
Joana Passos
Elena Brugioni
Anabela Rato