Entrevista a Ana Luísa Amaral (1956 – 2022)

6-adriana-varejao-contemporary-ceramics

Fotografia de TSF

Esta entrevista, em jeito de conversa amena, teve lugar no contexto da conferência Womanart, em Novembro de 2022. A Ana Luísa encontrava-se ainda em Salamanca, após a emocionante cerimónia de outorga do Prémio Reina Sofia, a que se seguiu uma série de conferências e entrevistas. Apesar de estar assim ‘em trânsito’ e em plena apoteose de tudo o que este importantíssimo Prémio Iberamericano significa, a Ana Luísa nem por um segundo vacilou em deste modo estar connosco, como sempre esteve e sempre o fizera ao longo dos mais de trinta anos de amizade profunda, lealdade e companheirismo que nos ligou.

Sim, Ana Luísa, o ‘corpo, o cérebro, os braços, a mão, o pensamento, as emoções e o espírito, tudo isto é poroso ao mundo, existe numa camada que não é estanque ao mundo, que é porosa’.

Até sempre querida Amiga, e obrigada pelo tanto que nos deste.

Ana Gabriela Macedo

Leia a entrevista aqui!

Entrevista com Vera Duarte (por Joana Passos)

Entrevista realizado do âmbito da Conferência Internacional Womanart (18 e 19 de novemebro de 2021).

Vera Duarte é uma escritora cabo-verdiana com uma longa e prestigiada carreira. Foi juíza desembargadora, Ministra da Educação e do Ensino Superior e conselheira da presidência da República de Cabo Verde. É igualmente uma reconhecida ativista pelos direitos humanos (prémio Norte-Sul do Conselho da Europa, 1995). Além de poesia, também escreveu ficção, ensaios e crónicas. Recebeu vários prémios internacionais como o prémio Prix Tchicaya U Tam’si de poesia africana (em 2001), Prémio Femina para Mulheres Notáveis 2020 e Prémio Literário GUERRA JUNQUEIRO 2021. Foi eleita Patrona dos Colóquios da Lusofonia em 2016, e é membro da Academia das Ciências de Lisboa desde maio de 2017, ano em que também se tornou Membro da Academia Gloriense de Letras (Brasil). É Membro da Academia Cabo-verdiana de Letras.

Obras publicadas:

–  Amanhã Amadrugada (1993) – poesia

– O arquipélago da paixão (2001) – poesia (Prix Tchicaya U Tam’si)

– A Candidata (2004) – romance (prémio Sonangol de literatura)

– Preces e Súplicas ou cantos da desesperança (2005) – poesia

– A Palavra e os dias (2007) – crónicas

– Construindo a utopia (2007) – série de ensaios sobre direitos humanos

– A Matriarca – uma Estória de Mestiçagens (2017) – romance

– De Risos e Lágrimas (2018) – poesia

– Exercícios Poéticos (2010) – poesia

– A Reinvenção do Mar (2018) – Antologia poética – Contos Crepusculares (2021) – ficção

Entrevistas WOMANART

O conjunto de entrevistas desenvolvidas pela equipe WOMANART tem por objetivo fixar um testemunho vivo do que foi viver e resistir às ditaduras de Portugal e do Brasil. As entrevistas reunidas dão voz a galeristas, jornalistas, cineastas, escritoras e artistas que nos falam do seu percurso pessoal e do seu legado. No caso de artistas mais recentes reflete-se sobre os reflexos do passado nas vivências e debates do presente.

Entrevista Tuca Siqueira (por Laís Natalino)

Tuca Siqueira. Foto: Victor Jucá/Divulgação

Foto: Diário de Pernambuco

Roteirista e realizadora brasileira com diversos prêmios e incursões em curadorias, laboratórios de projetos, júri de festivais e oficinas ministrando aulas em diferentes áreas do audiovisual. Formada em Comunicação (Universidade Federal de Pernambuco, UFPE), atuou como fotojornalista e se especializou em Estudos Cinematográficos (Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP) acumulando estudos em outros centros como a EICTV (Cuba). Transitando pelo documentário e a ficção, dirigiu 8 curtas, 6 séries e os longa metragens. Em “Vou contar para meus filhos”, “A Mesa Vermelha” e “Amores de Chumbo” a realizadora aborda questões da ditadura militar brasileira.

Vou contar para meus filhos (curta metragem, documentário, 2011): Entre os anos de 1969 e 1979, 24 jovens mulheres estiveram presas na Colônia Penal Feminina do Bom Pastor, em Recife (PE), porque lutavam por igualdade social e pela democracia em uma época em que o Brasil enfrentava uma ditadura militar. Passados 40 anos, o reencontro delas, que hoje moram em diferentes estados do país, traz de volta não apenas os laços de solidariedade que surgiram no presídio, mas também a lembrança de um Brasil que tentou calar vozes e violentar sonhos.

Vou contar para os meus filhos

Fonte: Tuca Siqueira (2011)

A Mesa Vermelha (longa metragem, documentário, 2012): Exibe depoimentos de 23 ex presos políticos no período da ditadura militar no Recife entre 1969, com a promulgação do AI 5 e 1979, com o advento da Lei da Anistia. Acompanha este documentário o debate entre os participantes,ao redor de uma mesa vermelha,sobre temas relacionados ao período da ditadura passando pelo golpe de 64, pela guerrilha do Araguaia, pela luta dentro das prisões em prol da anistia ampla, geral e irrestrita até a conjuntura atual.

A Mesa Vermelha

Fonte: http://www.amesavermelha.com.br/

Amores de chumbo (longa metragem, ficção, 2018): Um misterioso triângulo amoroso do passado ressurge anos depois. Miguel (Aderbal Freire Filho) e Lúcia (Augusta Ferraz) estão prestes a comemorar seu aniversário de 40 anos de casamento, mas a chegada de Maria Eugênia (Juliana Carneiro da Cunha) acaba atrapalhando os planos do casal, já que junto com seu retorno, voltam também as memórias dos amores vividos entre Miguel e Maria. Além dos horrores dos anos de chumbo, período da ditadura militar no Brasil.

Fonte: Filme “Amores de chumbo”

Entrevista Maria Clara Escobar (por Laís Natalino)

Maria Clara Escobar é realizadora, guionista e poetisa. Ela escreveu e dirigiu “Os dias com ele” (2012), longa-metragem documental sobre seu pai, Carlos Henrique Escobar, filósofo, professor e dramaturgo que tem uma história marcada pela repressão sofrida durante a ditadura militar. O filme foi premiado em festivais como: Mostra de Tiradentes (Brasil), DocLisboa (Portugal), IBAFF (Festival Internacional de Cinema de Ibn Arabi) e Festival de Cinema de Habana (Cuba). Seu primeiro longa-metragem de ficção “Desterro” foi lançado em 2020 no Tiger Awards Competition, no 49º Festival Internacional de Cinema de Rotterdam e também em Viennale, Festival de Cinema de Taipei. Em 2019, Maria Clara publicou seu primeiro livro de poemas “Medo, Medo, Medo”.

Imagem: Filme “Os dias com ele”, Maria Clara Escobar (2012)

Entrevista concedida (em áudio) . Respostas recebidas em 1 de fevereiro de 2021.

Pergunta 1. Você poderia nos descrever como começou a sua trajetória/o seu percurso nas artes visuais e no cinema?

Maria Clara Escobar: Quando era criança, eu fui criada pela minha mãe, mãe solteira, então eu ficava muito tempo sozinha em casa e numa rua perto da minha casa tinha uma locadora onde eles deixavam eu ficar durante a tarde. E assim eu comecei a ver muito VHS, muito filme, e bem cedo eu fui criando essa relação, essa espécie de possibilidade de habitar outros mundos, de fuga, uma utopia, também, de outras formas de vivenciar a realidade. E isso eu acho que me formou, hoje eu vejo isso assim. Até hoje, quando eu vejo filmes, o sentimento muitas vezes é esse e talvez tenha desenvolvido em mim esse jeito paralelo, esse jeito concomitante em sentir e organizar racionalmente as coisas. Então, eu diria, hoje, que começou aí, mas pragmaticamente começou quando eu estudava no segundo grau, no ensino médio – como a gente acho que chama ainda – e uma amiga, na verdade uma amiga de uma amiga, ia se inscrever no novo curso de cinema da Escola Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro. Era o primeiro ano da escola, eles estavam ainda entendendo e formatando os cursos, eu era muito nova, eu tinha 16 anos ou 15, talvez. Essa minha amiga ia se inscrever, eu fui com ela e aí você podia fazer uma aula de teste e aí eu fiz. Foi uma aula de três horas, com Jorge Durán, um curso de roteiro. Eu acho que naquela época era o único que tinha, o primeiro, e a aula foi muito apaixonante, eu senti ali que se eu pudesse estar ali eu queria estar. E aí aconteceu uma sorte, na verdade, eles não me perguntaram minha idade – você tinha que ter 18 anos fazer o curso – ainda era tudo muito informal, muito inicial. E aí eu pedi, na época, para o meu avô, que tinha um pouco mais condições de pagar o curso, para pagar o curso, ele aceitou e muito rapidamente eu comecei a trabalhar como roteirista, dentro ainda desse contexto de escola, com um professor. Eu acho que através do trabalho eu acho que seja uma segunda etapa, foi assim que se iniciou profissionalmente. E desde muito cedo eu trabalhei, comecei através do roteiro, eu não achava que quisesse dirigir cinema. Eu achava chato que todo mundo acha que tem uma coisa muito importante, uma visão muito particular e importante e todo mundo quer dirigir, e não era meu desejo, então eu achei que eu queria ficar escrevendo e assim fiquei alguns anos, isso tudo no Rio de Janeiro, de onde eu sou. Bom eu só posso falar dessa área do cinema, porque eu nunca trabalhei em outra, até já trabalhei, mas não posso dizer que tenho uma carreira em outra área. Eu fiquei muito fixada como essa pessoa, eu trabalhava só para uma pessoa, trabalhava só com roteiro e aí eu resolvi me mudar para São Paulo, com 17 anos também, tudo bem cedo. Na verdade, eu larguei o ensino médio, não conclui naquela época, porque eu já estava trabalhando, eu já tinha dinheiro, o primeiro aparelho de DVD da minha casa quem comprou fui eu, esse tipo de coisa era coisa luxo. E foi assim meu início, fui para São Paulo na tentativa de me aproximar mais dos sets de filmagens, que na época era o único lugar em que era possível de você participar, filmar sem que você tivesse contato com as pessoas que sempre fizeram cinema no Rio de Janeiro, de famílias ou de gente de muito dinheiro. Tinha uma coisa mais jovem acontecendo em São Paulo naquele momento, que eu não precisaria escolher uma única função no cinema e ser estagiária e assistente, fazer esse caminho hierárquico. E aí eu fui para lá e lá em São Paulo fiquei. Acho que é isso meu início.

Pergunta 2. Como você descreve ou observa a posição da mulher nas artes e no cinema quando começou a trabalhar e nos dias atuais?

Maria Clara Escobar: Olha, eu acho que a minha perceção… como dizer isso? Eu sou uma mulher branca, então eu tive o privilégio de só perceber o que acontecia, os sistemas machistas, as questões sexistas, a sexualização da participação da mulher no contexto de cinema, bem mais tarde, porque eram e foram violências consideradas sutis na época que eu comecei. Eu comecei muito nova, mas eu acho que o que eu poderia dizer é que a participação da mulher era sempre – sinto que era e que às vezes ainda é – muito sexualizada através das relações com os homens ou como as pessoas acham “ah, essa mulher está nesse lugar por isso”, os casais, as relações familiares, uma mulher que é esposa de alguém e entra num certo contexto ou é filha de alguém e entra num certo contexto e sempre dentro do trabalho vista como um corpo sexualizado. Eu acho que, talvez por uma forma de sobrevivência, eu descobri bem cedo, eu tinha muito jogo de cintura de me relacionar, tenho amigos homens e tal. Eu não gosto muito da palavra feminino e masculino, eu acho que não é sobre isso, porque são conceitos polarizados. Mas eu tinha um certo jogo de cintura de habitar os universos masculinos. Hoje eu sei que eu era sexualizada, era vista como um corpo sexual, mas assim eu fui fazendo, eu fui conseguindo fazer. E a reflexão sobre o que já foi veio depois, com certeza, graças a todas as reflexões de outras mulheres e muitas mulheres não brancas, que não têm esse privilégio de passar de forma segura, transitar de forma segura por esse ambiente em que são sexualizadas, em que seus corpos são sexualizados, objetificados. Então é isso, ao longo do tempo, eu fui percebendo e me conscientizando sobre a minha própria história e como eu vejo hoje é de uma forma muito mais radical, eu acho que é fundamental. Nada que é automático é bom sabe? Não é espontâneo, não tem a ver com espontaneidade, tem a ver com automatismo. Então, os sets serem todos brancos é um problema que tem que ser combatido, um automatismo que tem que ser combatido. Os sets serem masculinos é um problema que tem que ser combatido. Hoje em dia se eu olho para uma ficha técnica e só tem homens, para mim é uma coisa que eu acho um problema, sabe? Porque quer dizer que as pessoas estão fazendo aquele filme, muito provavelmente habitam um espaço de mundo, uma visão de mundo que não me interessa, não interessa mais. Talvez seja justo eu dizer “mais” porque durante algum tempo da minha vida eu não percebi isso, eu tive o privilégio de não perceber. Então, eu acho que os corpos das mulheres são muito sexualizadas até hoje, dentro de um contexto de cinema, quando elas conseguem entrar. Mas obviamente estou na construção da conscientização disso, na tentativa de que o dinheiro chegue às mulheres. A todas as mulheres, as mulheres não brancas, as mulheres mães que não conseguem trabalhar, enfim, as mulheres trans, todas mulheres.  Mas eu acho que tem isso, ainda é um lugar maioritariamente e com uma lógica estrutural de trabalho muito patriarcal, heteronormativa, branca e tal. Porque não é só sobre as mulheres estarem lá, não é só “então agora esse set tem oito mulheres e elas são sexualizadas, são tratadas sem respeito, são diminuídas ou vivem um lugar de desconfiança nos seus trabalhos” é uma coisa que tem que mudar. A estrutura está mudando essa participação, é assim eu vejo.

Pergunta 3. Pode nos contar um pouco sobre o processo de idealização e montagem do filme Os dias com ele e nos dizer quais foram as suas motivações pessoais e enquanto artista para sua realização?

Maria Clara Escobar: Qualquer pessoa que veja mais de uma entrevista minha, vai ver eu me repetir um pouco nesse tema, porque eu não vejo os projetos dos filmes nascerem de uma forma que a emoção está separada da ideia, ou seja, que o desejo está separado da estratégia, entende? Eu acho que isso nasce junto. E é importante desenvolver uma estratégia para realizar esse projeto, especialmente sendo mulher, porque sua estratégia tem que ser boa, mas é importante manter algum mistério sobre o início disso, sabe?  Então em Os dias com ele, de fato, o que aconteceu foi que, no momento, eu estava pensando muito sobre a questão dos limites entre o privado e o público. O que é considerado memória, o que é a nossa história. E o que eu, naquele momento, talvez não tivesse tão claro como eu tenho hoje, mas como eu acho que a estrutura familiar – de novo, classe média, classe alta, católica, branca, heteronormativa, heterossexual, si género –  ela é uma chave para a nossa estrutura. Como esse modelo é um modelo subjetivo, é um modelo de desejo, é um modelo de projeto de mundo, é o modelo, portanto, excludente. É um modelo que para mim tem a chave da nossa sociedade. Então, isso tudo estava em mim, foram pensamentos que eu fui aclarando ao longo dos tempos. E eu acho que esses lugares de encontro dessas coisas que a gente não sabe nomear me interessam e sempre me interessaram, justamente por tudo isso que eu estou falando. Então, eu tinha muito interesse em tentar, naquele momento, tentar entender, conseguir entender o que é a tortura. E foi uma jornada longa até entender que é impossível entender, que não é esse tipo de tentativa, enfim, as armadilhas que a gente vai caindo, as nossas próprias armadilhas. Então, na verdade foi isso, minha motivação pessoal foi fazer um filme sobre isso, acreditando muito que é importante a gente falar sobre os nossos conflitos, nossas dores, nossas questões e que é preciso relativizar uma certa importância dada a uma suposta história académica, aos limites que transformam os conceitos em polares. Então, acho que essas são as motivações reais. E no âmbito pessoal, de tentar construir um pouco uma compreensão sobre mim. Eu tinha uma intuição de que era importante entender esse lugar, desse choque político, de violência pessoal que fazia parte da minha história, então acho que são essas as motivações. Pode ser que a cada vez que eu fale sobre isso, isso mude um pouco, porque a gente vai refletindo sobre nossa vida e vai ganhando mais informações. A partir do momento que a gente vai agindo mais, as ações vão passando e vão reconfigurando um pouco certas compreensões. Eu acabei não falando da montagem, mas eu acho que não mudou, é isso que eu falei em relação à montagem também.

Pergunta 4. Quais foram as suas perceções quanto à receção do filme?

Maria Clara Escobar: Eu acho que a receção das coisas que a gente faz é sempre um mistério para mim. Porque eu acho que é importante a gente manter e dar importância receção do que a gente faz, mas de alguma forma não dar importância, ao mesmo tempo sabe? Foi meu primeiro longa-metragem, que eu fiz muito sinceramente, o tempo todo. Muitas consciências sobre mecanismos do cinema, no sentido de reconhecimento, os jogos que acontecem nos financiamentos, nas produções, nas pessoas, na vida social do cinema, nos festivais, eu não tinha nenhum desses conhecimentos e eu acho que isso foi bom, porque nada disso passou pela minha cabeça. Então, foi uma decisão nossa, minha e da produtora Paula Pripas, de estrear o filme no Brasil, de não ficar esperando festival internacional, estrear no Brasil e estrear na Mostra de Tiradentes. Naquele momento, que nos parecia o festival que estava em ebulição do melhor, da busca por um cinema nosso, um cinema brasileiro, um cinema não só nacionalista, mas um CINEMA, um cinema que não seja aquele cinema no qual a gente fica se referindo nas escolas de cinema, que não seja o cinema já “academicizado” – não sei se existe essa palavra – um cinema vivo. Então, a gente fez essa opção estratégica e foi muito bom, porque a gente, enfim, ganhou todos os prémios, quase todos, ganhamos muitos prémios, enfim, e muitas pessoas vieram falar com a gente, teve muita identificação. E quem não gosta do filme – o que é uma tristeza no Brasil – não vem falar com você. Parece uma coisa de time de futebol. É um país muito avesso ao conflito amoroso, no sentido de que as retóricas, os debates, as brigas elas são parte de um processo, e não o desfecho dos processos. Muita gente que eu cheguei a saber que reagiu mal ao filme tinha uma visão de cinema, de documentário muito diferente mesmo da que o busco e estou buscando, que é essa mesmo, que é acreditar, lutar para mostrar que estética nunca foi separada de discurso. Desde o primeiro momento que alguém, um dono de fábrica, colocou uma câmara e filmou os seus operários, seus funcionários, estava ali colocada, junto, a questão estética e discursiva. Então, eu acho que as minhas perceções quanto à receção do filme foram, primeiro, de um lado, me ajudaram muito a seguir fazendo cinema, porque, de novo, quando você é mulher, muito dificilmente você vai ser super-segura de tudo, porque você está sempre sendo colocada em questão e aprende desde que nasceu a se colocar em questão, sobre se o que você fala é válido, qual a sua importância, se você está certa, se você pode errar, se você é o quê. Então, eu não estou dizendo que as mulheres são inseguras, não é isso, mas é muito difícil você não visitar essas fantasias constantemente, então aquilo me deu uma força muito grande, porque eu fiz o filme acreditando no cinema que eu acredito, o cinema que hoje eu milito por. E por um outro lado, essa total consciência de que o Brasil ainda é muito prosaico na sua compreensão do que é estética, discurso, mensagem, o que é política. Para mim parece que a gente está 500 milhões de anos atrás de onde a gente poderia estar se se esforçasse mais, talvez.

Pergunta 5. O que considera que ainda está por ser contado no que diz respeito às mulheres artistas realizadoras na época da ditadura e aquelas que abordam essa temática atualmente?

Maria Clara Escobar: Ainda bem que eu não sei responder essa pergunta porque só elas poderão dizer, acho que só essas mulheres artistas, realizadoras etc. na época da ditadura e aquelas que abordam esse tema, só elas podem dizer. Eu espero que elas possam dizer com a linguagem delas, com as sensações delas, construir as atmosferas delas, e não essa atmosfera, enfim, não serem pressionadas a fazer um discurso considerado limpo e claro, porque eu acredito que não é sobre isso. Mas também quem quiser fazer, que faça. O que é importante é que elas façam. Eu acho que é isso. E que a gente normalize falar sobre a ditadura, que seja normal, porque tem muita gente que participou da ditadura, muitas famílias vivas, ainda vivendo esse tema. E é algo que faz parte da nossa história. Então, não tem nenhum sentido, senão o de proteger quem assassinou, torturou e defendeu a ditadura, não há nenhuma razão, senão a de apoiar e ser cúmplice de quem colaborou e defendeu e assassinou e torturou na ditadura, para a gente, além dessa razão não há outra, para a gente não falar sobre isso, porque isso faz parte da nossa história recente, antes que ela fique distante, eu acho que isso é importante.

Pergunta 6. Como e de que forma você acha que as questões relacionadas à ditadura vêm sendo discutidas e debatidas nas artes e em outros contextos no Brasil?

Maria Clara Escobar: Eu acho que as questões relacionadas à ditadura vem sido discutidas e debatidas de forma muito elementar demais, muito simples, muito nessa visão de quem fala sobre isso é a história oficial, sem uma reflexão de que a história oficial é sempre um ponto de vista e já sabemos de quem é o ponto de vista. Então, de forma muito pouco dialética, de forma muito pouco consciente, é isso que eu acho. Ao mesmo tempo, é melhor que ela aconteça como vem acontecendo, do que não acontecer, como desde a entrada do Bolsonaro é o que se defende. “Esqueçam isso, isso não existiu, isso não é importante” ou voltar a chamar de “Revolução de 64”, coisas patéticas e absurdas que a gente está tendo que viver no Brasil desde 2018. Mas tentando desconsiderar isso, esse absurdo histórico que a gente está vivendo com a presidência do Bolsonaro, eu acho que ainda de forma muito simplista as questões relacionadas à ditadura estão sendo discutidas, sinceramente. E que há uma resistência muito grande de se discutir as perceções do que aconteceu na ditadura, como a ditadura terminou, os acordos que foram feitos, as sensações, as famílias, tudo que esse momento histórico tão importante redefiniu e é como se a gente negasse que redefiniu, como se a história fosse só um acontecimento que houve e a história continuou linear. E não é possível que a gente veja assim o mundo. Essa é minha opinião pessoal.

Pergunta 7. Como e de que forma você vê que o meio digital (redes sociais, blogs, plataforma streaming) podem ou não contribuir para esses debates?

Maria Clara Escobar: Eu acho que o meio digital pode contribuir, no sentido de que pode dar amplitude, você pode fazer um arquivo de depoimentos, de famílias, de pessoas, um arquivo da ditadura militar de 64, por ano. Você cataloga, por ano, e tem depoimentos de pessoas que participaram, sobreviventes, famílias de sobreviventes, você pode catalogar todos os filmes que foram feitos. Falta uma organização desse arquivo e talvez, se a gente levasse a sério o que são os depoimentos pessoais e considera-los como arquivo histórico importantíssimo, esse tipo de catalogação já tivesse sendo feito. Os depoimentos pessoais serem vistos como algo de interesse público, estatal e histórico. Mas, enfim, as pessoas podem divulgar mais as coisas, talvez. Mas, de qualquer forma, para você fazer isso você precisa de políticas públicas, precisa de incentivo, precisa alguém faça isso, alguém faça a pesquisa, alguém documente, alguém pague o site, entende? Então é isso que eu vejo como possibilidade, mas também eu não sei como fazer na atual conjuntura.

Pergunta 8. Que papel poderá ter a arte numa altura em que regime de tendência autoritária se instalam e em que partidos extremistas ganham cada vez mais terreno em várias partes do mundo?

Maria Clara Escobar:  Olha, qual o papel pode ter a arte, qual papel político pode ter a arte em qualquer momento da história é a pergunta que vale um milhão de dólares. Porque muito da arte que vem sendo feita desde o dia zero, que se considera arte, ela é violenta, ela é excludente, ela cataloga, ela congela, ela prende, ela fixa. Então, eu acho que essa resposta, sempre que alguém perguntar isso, é algo muito complexo de se conseguir definir e algo que tem que estar sempre em mudança. A partir do momento que a gente estagnar uma compreensão sobre a área, está errado, tem que estar em movimentação, tem que estar dando rasteira nos nossos imaginários, nos nossos conceitos. É isso que eu acho. E quando eu tenho que responder algo assim, muito objetivo, que nem isso que você me pergunta, eu não quero parecer pessimista, mas eu acho que o papel mais importante que a gente tem é de deixar registros – e por registro eu não digo documentar de formar higiénica – deixar registros das sensações, do que aconteceu, do que nós vemos e vivemos, de que somos testemunhas de que mundo a gente estava tentando construir. Para que a história, no futuro, não seja só a versão deles, nem só uma versão, nem só duas, nem só três, nem só quatro. Acho que a gente tem essa possibilidade e talvez dever – não quero parecer muito épica, porque também não é isso, mas a sua pergunta é meio épica, grega – eu acho que a gente tem como deixar imagens para o futuro que, no mínimo, vão abrir portas para que as pessoas do futuro façam outras imagens, as imagens delas, e não percam tanto tempo, como a gente perde, tentando reconstruir ou construir um caminho para imagens e sensações que nos foram tiradas, negadas, desaparecidas.  

Entrevista com Beatriz Leal (por Edma Góis)

Imagem: cortesia de Beatriz Leal

Paulistana, radicada em Brasília, a jornalista Beatriz Leal, 35 anos, teve seu livro “Mulheres que mordem”, entre os finalistas do Prêmio Jabuti, o mais importante dado a escritoras e escritores no Brasil, em 2016. Ali, ela explora a experiência da ditadura argentina em uma inevitável aproximação com o Brasil. Beatriz Leal é especialista em relações internacionais e comunicação pública e vive na capital federal do Brasil desde 2004, o que segundo ela deve impactar no seu trabalho como escritora. A autora acredita que a principal relação entre a atual conjuntura política e o seu livro é que ambos são resultantes dos anos que se viveu uma democracia sem esperar que pudéssemos lidar com a violência da nossa própria história. Na entrevista a seguir, ela conta como surgiu a ideia do romance, a partir de uma reportagem da The New Yorker, além de pensar sobre o papel da arte no momento político que seu país e o mundo atravessam.

Sua trajetória como escritora é recente, mas já marcada pela indicação do seu livro para um prêmio importante no Brasil. Como você começou a escrever?

Sempre escrevi como forma de elaborar minhas questões – diários, cartas, etc. Mas não pensava em ser escritora. Em 2012, li uma matéria na revista The New Yorker (Children of the dirty war – Francisco Goldman) sobre as Avós da Praça de Maio, que me moveu a criar o universo do Mulheres que mordem. Quando o romance figurou na lista dos finalistas do Prêmio Jabuti, pensei que talvez eu pudesse, sim, continuar no caminho da literatura. Quando li essa matéria citada, eu já tinha me formado na escola, na faculdade de jornalismo e na especialização em relações internacionais, e nunca tinha ouvido falar das Avós da Praça de Maio (só das mães) e dos sequestros das crianças. Fiquei chocada com minha alienação e/ou falta de formação no assunto. Isso me inquietou demais. Não pensei: “preciso divulgar essa questão e, para tanto, vou fazer um romance”. Mas, da inquietação, as personagens nasceram em mim e a elaboração do romance me foi inevitável.

Que textos, obras sobre as ditaduras argentina e brasileira foram consultados e ajudaram na escrita de Mulheres…? Gostaria que você falasse um pouco sobre a pesquisa que antecede à escrita.

Eu mergulhei no site das Abuelas (https://www.abuelas.org.ar), que disponibiliza muito material – entrevistas com todas as avós que buscam seus netos, entrevistas com netos encontrados. Essa foi minha pesquisa. O filme O Leitor foi uma referência para eu conseguir elaborar o personagem do torturador.

Você recorda outros textos, filmes e obras de arte de artistas mulheres que tenha influenciado a sua pesquisa ou produção?

Durante a fase de pesquisa, não, infelizmente. Eu pesquisei mais a produção das próprias Abuelas, no campo da não-ficção. Mas depois que o livro ganhou certa visibilidade, fui conectada a outras autoras que abordam o tema, cito aqui algumas: Adriana Lisboa (Azul corvo), Luciana Hidalgo (Rio-Paris-Rio), Márcia Camargos (Um menino chamado Vlado), Rosângela Vieira Rocha (O indizível sentido do amor) e Sonia Bischain (Nem tudo é silêncio). No campo da teoria, a prof. Eurídice Figueiredo (A literatura como arquivo da ditadura brasileira) é referência para mim. 

Com a eleição de um militar da reserva, o avanço da extrema direita e mais recentemente de um espécie de “invasão” dos militares nesse governo, ocupando muitos cargos, voltamos a falar da ditadura no Brasil. No seu entendimento, qual o papel da arte produzida até aqui para a compreensão do que foi a ditadura brasileira e da urgência de que não se repita isso agora?

Penso que a arte é a melhor forma de elaboração de traumas e recalques coletivos. No caso da literatura, o leitor, quando interrompe outras atividades para ler um livro, ele empresta todo seu aparelho psíquico àquela voz narrativa. Não conheço meio melhor para promoção do exercício da alteridade. Nesse sentido, creio que a literatura que trata da ditadura militar no Brasil (ou na América Latina) é fundamental nesse momento, tanto quanto registro da história, como forma de elaboração do trauma. Só não sei como fazer essa literatura chegar a quem de fato necessita lê-la. Essa é a questão de um milhão de dólares.

A experiência enquanto mulher e também enquanto artista influencia a criação de novas abordagens sobre as ditaduras?

Não me sinto na posição de fazer essa avaliação. Creio que um especialista em literatura comparada poderia responder de maneira mais justa. Sei que o Mulheres que mordem explora bastante o feminino, e penso que minha experiência neste sexo contribui para isso. Mas não sei se pode chegar a ser chamado de “nova abordagem”, quando tomados como referência autores homens.

Em que medida, viver em Brasília agora te faz pensar na ditadura e outros temas políticos? Acha que vai voltar a tratar disso?

Brasília reúne pessoas de todo o país. O sotaque brasiliense, que começa a ganhar seu contorno, é uma ilustração fidedigna desse fenômeno. Viver aqui me faz ter contato direto com nossa história. Com certeza, o fato de morar aqui teve influência sobre mim quando me envolvi com o tema da ditadura militar da Argentina. Não sei se voltarei a tratar do tema ditadura militar especificamente, mas é bem possível que as relações sociais e a política pautem minha literatura no futuro.

Você vê no seu trabalho em concreto reflexos da questão do papel da mulher na sociedade em relação com a ditadura, com as suas narrativas e com os seus reflexos na contemporaneidade?

Mulheres que mordem é inteiro sobre isso. Há personagens mulheres que questionam o papel da mulher na sociedade da década de 1970, há a protagonista que, vivendo em 2005/06, manifesta os reflexos do que suas antepassadas viveram durante a ditadura. Quando escrevi o livro, não houve uma intenção. Mas esse foi o resultado. Creio que essas questões habitam o meu corpo, os nossos corpos todos.

Que papel poderá ter a arte numa altura em que regimes de tendência autoritária se instalam no Brasil, na Europa, e em que partidos extremistas ganham cada vez mais terreno? 

Acho que serão alguns papéis correndo paralelamente. O primeiro é o registro: enquanto tivermos artistas trabalhando ao lado da História, podemos saber que o futuro terá como conhecer o passado. O segundo é o escapismo: para algumas mentes, a única forma de lidar com a dor da realidade é a arte, seja criando-a, seja consumindo-a. O terceiro é a promoção da alteridade: um livro ou um filme que faça o leitor/espectador compreender a dor de determinada minoria contribui muito para a geração da empatia. E, por último, penso que a arte será a melhor forma de elaboração coletiva do trauma social que vivemos presentemente. 

Serviço:

Mulheres que mordem, Beatriz Leal. Imã Editorial. 2015.

Imagem: cortesia de Beatriz Leal

Entrevista Flávia Castro (por Laís Natalino)

Imagem de: Revista de Cinema

Flavia Castro é uma realizadora brasileira que dedica-se a trabalhos em ficção e documentário. Escreveu e dirigiu o documentário Diário de uma Busca, em que investiga as circunstâncias da morte de seu pai, o jornalista, Celso Afonso Gay Castro. O documentário, lançado comercialmente em 2011, foi premiado no Brasil e no exterior e participou de mais de trinta festivais internacionais. O filme será exibido no II Ciclo de Cinema WOMANART.

Flavia Castro também trabalhou com importantes documentaristas, como Richard Dindo, em Diário do Ché na Bolívia (1994), Philippe Grandrieux, em Jogo do Bicho (1995) e Eduardo Escorel, em Imagens do Estado Novo (2015).

Em 2018, lançou seu primeiro longa de ficção, Deslembro, que teve estreia mundial na seleção oficial do Festival de Veneza 2018 (Mostra Orizzonti) e conquistou vários prémios. O filme, que também aborda a ditadura brasileira, retrata uma adolescente que vive com a família em Paris quando a Anistia é decretada no Brasil.

Entrevista Ana Clara Guerra Marques (por Marie-Manuelle Silva)

Ana Clara Guerra Marques é Mestre em Performance Artística – Dança, com a tese «Sobre os Akixi a Kuhangana entre os Tucokwe de Angola: A performance coreográfica das máscaras de dança Mwana Phwo e Cihongo», pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa.

Licenciou-se em Dança – Especialidade de Pedagogia, pela Escola Superior de Dança de Lisboa do Instituto Politécnico de Lisboa.

É autora dos livros “A Alquimia da Dança” (1999), “A Companhia de Dança Contemporânea de Angola” (2003), “Para uma História da Dança em Angola – Entre a Escola e a Companhia: Um Percurso pedagógico” (2008) e “Máscaras Cokwe: A linguagem coreográfica de Mwana Phwo e Cihongo” (2017).

Iniciou os seus estudos em dança na Academia de Bailado de Angola em 1970 e, em 1978, passou a dirigir a única Escola de Dança existente no país, atividade que desenvolveu a par da docência.

Da sua estratégia para a defesa e projeção da dança, enquanto linguagem artística e arte performativa em Angola, fazem parte a sua prática como bailarina e coreógrafa, fundando em 1991 a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, a primeira companhia profissional em Angola (e uma das primeiras em África).

A Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC Angola) foiconstituída em 1991 nas então estruturas do Ministério da Cultura, designada durante os dois primeiros anos como Conjunto Experimental de Dança (CED).

A companhia profissional independente, única em Angola (a quarta fundada no continente africano), constituída por bailarinos angolanos por si formados, foi desenvolvendo uma linha de trabalho singular. As peças criadas confrontam o público com as suas próprias histórias, aspetos do seu quotidiano, das suas realidades sociais, da sua condição de cidadãos de universos que se cruzam numa época em que as barreiras geográficas e culturais são superadas pelos recursos que nos disponibilizam as novas tecnologias. Estas, combinadas com outras linguagens, passaram a integrar os discursos artístico e estético da CDC Angola, onde o corpo e o movimento constituem o elemento catalisador.

A partir de estudos de investigação efetuados em várias regiões de Angola, Ana Clara Guerra Marques foi propondo diferentes vocabulários e novas linguagens, no âmbito das suas pesquisa e experimentação, apresentando outras possibilidades para a revitalização da cultura de raiz tradicional. Tem vindo, simultaneamente, a deslocar a dança para espaços não convencionais, levando o público a descobrir diferentes formas e conceitos de espetáculo, alguns em parceria com importantes nomes da literatura e das artes plásticas angolanas, entre os quais Manuel Rui Monteiro, Artur Pestana Pepetela, Frederico Ningi, Carlos Ferreira, Jorge Gumbe, Mário Tendinha, Francisco Van-Dúnem, Masongi Afonso, Zan de Andrade e António Ole.

A utilização da dança como meio de intervenção e crítica social, expondo o ser humano enquanto cidadão do mundo e protagonista da cena social angolana, está na base do trabalho da Companhia, que deu origem à rutura estética e formal da dança angolana, e que luta desde a sua criação contra os mais diversos obstáculos decorrentes da sua existência, num terreno conservador, fortemente cunhado pela quase ausência de um movimento de criação de autor ao nível da dança, praticamente absorvido pelas danças populares e recreativas urbanas.

A CDC Angola resiste numa condição de sobrevivência sem qualquer tipo de apoio institucional, mas, apesar das adversidades, e consciente da importância da sua missão inovadora, aponta novos olhares sobre a dança, tornando-se em 2009 uma companhia de Dança Inclusiva, pela integração de bailarinos portadores de deficiência física.

1 – Pode descrever-nos como se iniciou o seu percurso na dança?

R. O meu contacto com a dança deu-se, ainda na Angola colonial, através da Academia de Bailado de Luanda, que era a única escola profissional existente em Luanda. Tinha 8 anos de idade. Depois da independência, o ensino da dança em Angola foi retomado pelo estado e inscrevi-me na Escola da Dança do então Conselho Nacional de Cultura. Um ano e meio depois, era indicada para dirigir essa mesma escola, pois a professora / directora havia partido para Portugal. Começou aqui a minha “missão” na luta pela profissionalização da dança em Angola.Tinha eu 15 anos de idade.

2 – Qual era a posição da mulher na dança na época em que começou a trabalhar?

R. Eu comecei a trabalhar no início de vida de um país, onde a luta pela igualdade de classes e pela emancipação da mulher eram duas das metas traçadas. A dança existia apenas na sua forma patrimonial / tradicional e popular, onde as diferenças de género eram determinadas pela própria estruturação socio-cultural de cada grupo etno-linguístico. A dança, na sua dimensão teatral e profissional não existia. Portanto, estava nas minhas mãos instituir, antes de tudo, a dança nos seus planos pedagógico (enquanto directora e professora da única escola do país) e cénico (enquanto bailarina e coreógrafa).
Digamos que eu estava numa situação de “Pole position”, mas sem companheiros de “corrida”!

3 – Veio a abordar questões relacionadas com a ditadura no seu trabalho? De que ponto de vista?

R. Antes de mais é importante dizer que o meu trabalho, quer enquanto professora, quer enquanto coreógrafa foi sempre, de algum modo e em simultâneo, condicionado e inspirado por uma certa ditadura. Qualquer ideia ou decisão tinha de ser aprovada / censurada em “instâncias superiores” as quais, na maior parte das vezes, por falta de conhecimento sobre estas áreas mais sensíveis, tinham a mão bastante pesada. Estes impedimentos e policiamentos constantes passaram a ser recorrentes enquanto material de inspiração para o meu trabalho criativo. Enquanto coreógrafa utilizo frequentemente o humor para retratar personagens e contextos quase reais, colocando o público num desequilíbrio entre o hilariante e o dramático. Esta foi sempre a única forma de sobreviver num ambiente de ideias e conceitos absolutamente espartilhados.

4 – Várias décadas depois do 25 de abril, e desde o contexto que é o seu, há contributos sobre a ditadura, direta ou indiretamente, na dança que contribuam para um melhor entendimento do tempo em que vigorou, entre os anos 30 e os anos 70?

R. No que diz respeito à criação de autor, não. Na então província portuguesa, Angola, a dança profissional não tinha qualquer tradição. Além da Academia de Bailado que era, como acima referido, a única escola de vocação profissional, existiam alguns estúdios particulares com um carácter mais lúdico. Nunca se constituiu uma companhia de dança profissional, à semelhança do que se passava no teatro, por exemplo. Angola foi visitada pelo Ballet Gulbenkian, nos anos 70, o qual se apresentou em Luanda e em mais duas cidades com as usuais peças de repertório como O lago dos cisnes, O quebra-nozes ou o Mandarin maravilhoso. Localmente existiam alguns grupos “folclóricos” cujo enquadramento no CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola) pode considerar-se expressivo no que respeita ao olhar colonial sobre o património cultural locais. O carnaval, manifestação popular, é um dos eventos mais expressivos de leitura da ditadura colonial em Angola, o qual conserva marcas evidentes (principalmente a nível do vestuário e adereços) de uma ocupação europeia. Entre estes grupos existiam alguns (dos quais o mais antigo é o União Operário Kabocomeu) cuja dança característica, a Kazukuta, era uma forma de contestar o regime. Os dançarinos, vestidos com fatos pretos, máscaras de europeu, cartolas, botas e sombrinhas, satirizavam o poder colonial e os seus agentes políticos, em especial a classe do patronato.

5 – Acha que a sua experiência enquanto mulher, mas também enquanto artista influencia a introdução de novas abordagens a estas temáticas (totalitarismos)?

R. Não tanto enquanto mulher, mas enquanto artista alinhada e inspirada por outros colegas em todo o mundo que usam a arte como forma de alerta e intervenção, estou absolutamente convencida de que sim. É da história que as artes e os artistas marcam presença permanente na vanguarda das grandes mudanças e alterações sociais. No mundo actual, onde os movimentos racistas, fascistas, xenófobos, homofóbicos, etc. voltam a ganhar visibilidade, a nossa intervenção volta a ser fundamental.

 6 – Há no seu trabalho em concreto reflexos da questão do papel da mulher na sociedade em relação com a ditadura, com as suas narrativas e com os seus reflexos na contemporaneidade?

R. Sim, há. Nas peças que assino para a CDC Angola o tema do feminino aparece frequentemente, bem como a situação da mulher, sobretudo na sociedade angolana que é fortemente machista. Normalmente preferencio abordagens caricatas mas que mostram bem como a nossa sociedade olha e determina o “ser mulher”. A peça que estavamos a criar (eu e a coreógrafa Irène Tassembédo) antes da pandemia do Covid-19, era integralmente inspirada neste questinamento sobre a construção do “género” feminino. Estas propostas coreográficas são, a meu ver, tanto mais interessantes se interpretadas à luz do facto da Companhia de Dança Contemporânea de Angola ser, há 10 anos, uma companhia masculina e inclusiva e de Angola ter vivido, após a independência, durante cerca de quatro décadas, num modelo cruel de ditadura disfarçada de democracia.

7 – O que considera estar ainda por ser contado no que diz respeito às mulheres e à dança na época da ditadura?

R. A época da ditadura, em Angola, estendeu-se até há bem pouco tempo. Digamos que vivemos duas ditaduras; a colonial e a pseudo-socialista, entretanto transformada em capitalismo desregrado e comandado por máfias cujos tentáculos se estenderam não exclusivamente às esferas política e económica mas, igualmente, às esferas sociais e culturais / artísticas. Temos de continuar a colocar pedras neste caminho de fazer da dança uma “arma” de denúncia e combate, na esperança de que outras pessoas saiam da letargia do entretenimento, ganhem coinsciencia e tenham a coragem de o trilhar.

Luanda, 28 de Junho de 2020

Ana Clara Guerra Marques

Fotos de Rui Tavares cortesia Ana Clara Guerra Marques

Vídeo cortesia Ana Clara Guerra Marques

História da Companhia de Dança Contemporânea de Angola (cortesia Ana Clara Guerra Marques)

Entrevista Ana Vidigal (por Márcia Oliveira)

Ana Vidigal (Lisboa, 1960) licenciou-se em pintura pela Escola de Belas Artes de Lisboa em 1984. No seu trabalho, sobrepondo várias técnicas à pintura, Ana Vidigal resgata elementos de memória(s) pessoais, familiares, políticas e culturais. Daí emergem composições que se revelam poderosos constructos estéticos e críticos em torno de questões como o colonialismo, a condição da mulher na sociedade, entre tantos outros temas.

Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1985 e 1987, ganhou o Prémio Maluda em 1999 e o Prémio Amadeo de Souza Cardoso em 2003. A sua primeira exposição antológica, Menina Limpa, Menina Suja, realizou-se em 2010 no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (com curadoria de Isabel Carlos).

A sua exposição Amor Próprio pode ser vista no Espaço 531 da Galeria Fernando Santos, no Porto, até 31 de Julho de 2020.

Esta entrevista foi realizada em Junho de 2019 no atelier da artista.

Bibliografia:

Isabel, C. (2010). Ana Vidigal-1980-2010: Menina Limpa Menina Suja. In F. C. G. CAM (Ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. CAM.

Rosengarthen, R., & Soares de Oliveira, L. (2003). Ana Vidigal. Lisboa: Assírio & Alvim.

Vidigal, A., & Rusengarthen, R. (2000). O Véu da Noiva. In T. M. B. Dias (Ed.). Funchal: Câmara do Funchal.

Ana Vidigal, Caderno V, 2000-2010

Entrevista Raquel Afonso (por Ana Bessa Carvalho)

Nota biográfica: Raquel Afonso é licenciada em Antropologia pela NOVA FCSH (2013-2016), realizou estágio curricular no Museu Nacional de Etnologia com o projecto “Nos Bastidores do Museu: Migração do Arquivo de Imagem em Movimento Referente à Exposição Os Índios, Nós” (2016). Mestre em Antropologia pela NOVA FCSH (2016-2018). Participou no Seminário Memória, Cultura e Devir, sob orientação da Professora Doutora Paula Godinho. Em 2018, ingressou no Doutoramento em Estudos de Género pelo ISCSP/NOVA FCSH/FD-UNL. No mesmo ano, tornou-se Investigadora Integrada do IHC.

1 – Como surge o interesse pelo Estado Novo, em particular sobre a homossexualidade durante este período?

Bom, eu acho que sempre tive interesse por estas temáticas, nomeadamente porque durante a minha adolescência era difícil conseguir “apanhar” alguma coisa, o que sabia chegava-me através de filmes estrangeiros… Mas durante a licenciatura que fiz em Antropologia, as alunas e os alunos têm que elaborar vários trabalhos nas cadeiras que fazem e eu fui sempre aproveitando esses trabalhos para procurar saber mais sobre a comunidade LGBTI. Durante o mestrado (que também fiz em Antropologia) podíamos escolher uma cadeira de opção livre, e optei por realizar uma no Mestrado de Estudos sobre as Mulheres. Mais uma vez, tínhamos que elaborar um trabalho. E escolhi fazer sobre os direitos LGBTIQ+ em Portugal, numa perspetiva diacrónica. Foi aí que percebi que havia imensos estudos sobre a situação legal LGBTIQ+ no país, por exemplo, mas sobre tempos recentes. E que havia uma lacuna no pré-25 de abril, como se não existissem homossexuais na ditadura. Fiz alguma pesquisa e encontrei alguns trabalhos, mas poucos. Sobre o facto de ser crime, doença… Sobre algumas pessoas conhecidas. Mas sobre as desconhecidas nada. Como me apaixonei pelos Estudos sobre Memória (e isso devo-o à minha orientadora, Paula Godinho) decidi juntar os dois assuntos. A homossexualidade (e o lesbianismo) durante a ditadura portuguesa, através do resgate de memórias de pessoas que viveram esse período.

2 – Quais foram os obstáculos que encontraste ao fazer um trabalho de investigação como aquele ao qual te dedicas?

Uma das maiores batalhas que travei durante o período da minha investigação foi mesmo o processo de encontrar pessoas que quisessem falar sobre o assunto. O que eu queria era compreender como é que resistiam no quotidiano os homossexuais das classes mais baixas, porque a sua situação era pior (devido ao tratamento que era dado à homossexualidade, considerando a classe social de cada um). E essas pessoas não as encontrei. Claro que existem, muitas tiveram um casamento heterossexual, com filhos, agora netos… Muitos autorreprimiram-se. Adaptaram-se à norma. E, depois disso, acho muito difícil fazer um «coming out». Os entrevistados e entrevistadas que me falaram da sua vida são pessoas, digamos, de uma “classe média”, desconhecidas do público em geral e consegui-as através de uma gatekeeper, a pessoa que nos abre as portas do terreno. Uma amiga mais velha, que conhecia pessoas mais velhas e me foi indicando algumas. Depois, segui o sistema “bola de neve”, em que uma pessoa me dá o contacto de outra, e assim sucessivamente.

3 – E que conclusões inesperadas ou surpresas surgiram enquanto investigavas?

Olha, sinceramente, acho que uma das grandes surpresas que encontrei foi realmente o facto de ser muito difícil encontrar pessoas com quem falar e, mais ainda, encontrar pessoas que queiram falar. Eu achava que o facto de partilhar uma identidade não-normativa com elas e eles me iria “facilitar” o trabalho. Isso e, claro, garantir o anonimato. Mas, mesmo assim, as pessoas tendem a não querer falar. Outra das surpresas, mas boa, foi o facto de ter conseguido conhecer e entrevistar um número “interessante” de mulheres lésbicas, porque sabia que seria muito mais difícil encontrá-las.

4 – Como selecionaste as pessoas que entrevistaste para o teu trabalho? Foi difícil encontrar pessoas que quisessem contribuir com testemunhos?

Nota que conheci 17 pessoas, só 12 falaram comigo e só utilizo 10 histórias de vida no livro. Tive pessoas que não quiseram falar, assim que souberam a temática que estava a desenvolver, e tive pessoas, que já depois da entrevista realizada, não quiseram participar. Foi difícil. E às vezes desanimador. Mas as pessoas que se disponibilizaram, decidiram fazê-lo porque, e lembro-me bem, me “queriam ajudar”, queriam “dar o seu contributo”, visibilizar uma parte da história que estava na sombra. E essa “disponibilidade”, esse “apoio” que essas pessoas me deram também teve que ver com a relação de confiança que fui estabelecendo com elas nas conversas que tínhamos e numa base de partilha. Eles e elas tiveram que me conhecer primeiro, para eu os conhecer depois.

5 – Ao escolher quem entrevistar, tens em consideração o género de cada pessoa? A experiência das mulheres lésbicas é diferente da experiência dos homens homossexuais durante o Estado Novo?

Bom, eu acho que acabam por ser as pessoas a escolher-me, sabes? É um processo interessante, e lento. Porque não posso chegar ao pé de uma pessoa e ela contar-me a sua história em 10min. É preciso fazer a levedura necessária para criar uma relação de confiança. Dadas as dificuldades em encontrar pessoas que quisessem falar comigo, todas as que apareciam, eu conhecia e tentava entrevistar. Acabou por ser esse o processo, mas tentava sempre contrabalançar, de forma a manter uma “paridade de testemunhos”, digamos assim. Mas claro que tinha uma série de questões apenas direcionadas para homens e outras apenas direcionadas a mulheres. Tanto a opressão como as formas de resistência quotidianas são diferentes para homens e para mulheres. É uma experiência totalmente diferente porque os papéis sociais que se esperavam de uns e de outros eram igualmente diferentes.

6 – Parece haver uma ausência das mulheres em estudos sobre a homossexualidade, talvez pelo domínio da questão masculina nestes estudos ou pelo facto de a dupla invisibilidade da mulher lésbica lhe conferir uma certa facilidade em passar despercebida e ser ignorada. Como entendes a vivência das mulheres lésbicas durante o Estado Novo?

Como sabes, na altura, e no geral, os homens detinham o domínio do espaço público e as mulheres remetiam-se à esfera do privado, da casa. Para os homossexuais e lésbicas isto também acabava por acontecer. Os homens estavam mais na rua, frequentavam mais os locais de encontro para a prática sexual e isso também os fazia mais visíveis. A Polícia tinha conhecimento destes sítios e das práticas sexuais que lá aconteciam e vigiava esses locais, o que também fazia com que os homens fossem mais detidos. As mulheres não tinham urinóis para frequentar e, pelo menos aquelas com quem falei, estavam mais em casa, mesmo que com a sua namorada. Porque aí, ninguém desconfiaria, eram “apenas amigas”. Por isso, o que dizes faz muito sentido. As mulheres lésbicas tinham mais facilidade em passar despercebidas, até porque, eu acho, não eram muito levadas a sério… O lesbianismo fazia parte do reino do não-dito, se não se fala nele, não existe. Como é que duas mulheres poderiam ter uma relação sexual sem um falo? Penso que, por isso (ou seja, a inexistência de um homem e do seu “membro viril”) eram “desconsideradas”. Mas parece-me que acabaram por jogar com esse factor a seu favor.

7 – Planeias um estudo mais aprofundado sobre a questão das mulheres?

Olha, agora estou praticamente a meio do Doutoramento em Estudos de Género, no qual estou a trabalhar a homossexualidade, o lesbianismo e as formas de resistência nas ditaduras ibéricas do século XX, através de uma perspetiva comparativa. Pelo menos nos próximos dois anos, a minha investigação não irá passar exatamente, ou apenas e só, pela questão das mulheres lésbicas. Mas, quem sabe. É algo que me fascina, na verdade. E ainda há tanto por explorar…

8 – No teu trabalho, Homossexualidade e Resistência no Estado Novo, assim como noutros estudos, é afirmado que o fim da ditadura não significou uma libertação para as pessoas LGBTQI+. Podemos falar de um movimento de libertação em Portugal depois da ditadura?

De libertação sexual/da sexualidade? Eu acho que não. Pelo menos não nos anos imediatamente a seguir ao fim da ditadura. Assim que se deu o 25 de abril há dois momentos a assinalar. Um, no 1º de maio, onde surge no Porto um cartaz que diz “Liberdade para os Homossexuais” e outro, a 13 de maio, o Manifesto Liberdade para as Minorias Sexuais, que saiu no Diário de Lisboa. E mesmo em 75, através das entrevistas que fiz, é percetível que houve tentativas de as pessoas se começaram a organizar para discutir a temática, mas que não resultaram. Coletivo só em 1980, mas extingue-se em 1982. E só nesse ano é que a homossexualidade deixou de ser criminalizada em Portugal, imagina. Oito anos após o final da ditadura! Eu acho que o movimento de libertação nasce nos anos 90, mas que estes momentos que te falei, desde o fim do salazarismo, foram as sementes que ajudaram a fazer “rebentar” o movimento LGBTQI+ em Portugal.

9 – De que formas a ditadura influenciou e condicionou a vivência de pessoas LGBTQI+?

Eu acho que as ditaduras influenciam sempre a vida das pessoas que nelas vivem. Mas no que toca à repressão salazarista em relação às sexualidades dissidentes acho que condiciona de forma brutal. Dou-te um exemplo. Eu agora estou a fazer pesquisa de arquivo. Como eu refiro no livro, há uma série de leis que criminalizavam a homossexualidade e foram sendo alteradas/acrescentadas ao longo do tempo. Houve um decreto-lei (o 35042) que metia a PSP a vigiar os homossexuais. Então, os agentes faziam as suas rondas e se vissem alguém mais “amaneirado”/”afeminado”, essas pessoas eram detidas por suspeita de serem “invertidos” e de praticarem “atos contrários aos bons costumes”. Imaginas o choque disto na vida de uma pessoa? Chegavam a ir fazer exames ao Instituto de Medicina Legal, para se provar, ou não, que tinham sido “vítimas de sodomia passiva”. Era uma coisa brutal, digo-te. Para as mulheres, lá está, era menos “agressivo”, porque eram menos visíveis. No entanto, isso condiciona imenso. Ter que estar constantemente atento ou atenta, a olhar por cima do ombro, com medo.

10 – Que ecos encontras hoje dos anos da ditadura no que toca à experiência LGBTQI+? Que obstáculos ainda existem para a igualdade?

Vários investigadores e investigadoras, e incluo-me aqui, consideram que a homofobia durante a ditadura foi tão dura que causou um grande impacto que ainda hoje se reflete. Ainda hoje as pessoas sofrem discriminação. Sem dúvida nenhuma, acho que o maior eco que encontro é a mentalidade homofóbica. É sermos olhadas de lado, ouvir comentários na rua… Aquilo que eu vejo é que, apesar do muito que se conquistou em relação aos direitos LGBTI, a homofobia ainda está (demasiado) presente numa sociedade que se diz democrática. Não só a homofobia, como o machismo, o racismo, a xenofobia… São questões que têm que continuar a ser trabalhadas, trazidas para a praça pública, a gerar discussão… Originar uma educação diferente, mais inclusiva. Isso é muito importante para ajudar uma nova geração a crescer com mais igualdade e menos discriminação.

11 – Como definirias a figura da mulher lésbica durante o Estado Novo?

Com exceções, que existiram, eu acho que a mulher lésbica durante o Estado Novo era uma mulher que se sentia desencaixada dos papéis sociais que lhe eram atribuídos. Eram mulheres que arranjavam formas de resistir à heteronormatividade e ao patriarcado, mesmo que essas formas fossem veladas. Eram mulheres que se queriam encontrar, perceber o que sentiam, viver a vida o melhor possível.

12 – Como definirias a figura da mulher lésbica agora?

Hoje, acho que as mulheres lésbicas (as mais jovens, pelo menos) reivindicam o seu espaço na vida pública. Lutam pela sua visibilidade e eu considero que a visibilidade é muito importante porque as mulheres lésbicas não têm que estar na sombra de ninguém, seja essa sombra feita por homens ou por mulheres heterossexuais. Nós também lutámos, também estivemos lá. E estamos.

13 – E o movimento feminista de então, e o de agora, em relação às mulheres LGBTQI+?

Olha, eu acho, muito sinceramente, que nos primórdios do movimento feminista se tentou, de certa forma, “esconder”, ou mesmo “apagar”, a existência das mulheres lésbicas das suas fileiras, porque não era bom para a imagem do movimento. Acho que hoje ainda continuamos ofuscadas pelo (pelo menos) duplo estigma, de sermos mulheres e de sermos mulheres lésbicas. Mas sinto que estamos a tentar alterar isso, porque as lésbicas também se querem fazer ouvir e fazem por isso. As lésbicas e não só. Acho que o movimento feminista atual está, cada vez mais, a lutar por um feminismo intersecional, que dê conta das diferentes experiências das mulheres, sejam elas negras, lésbicas, cis, brancas, trans. E isso é muito importante, porque um movimento que luta pela igualdade também tem que se pautar pela inclusão e não-discriminação.

Bibliografia

Afonso, Raquel. Homossexualidade e Resistência no Estado Novo. Ourém: Luz Elétrica, 2019.