O programa Os Filhos da Madrugada da RTP Play traz 25 entrevistas com homens e mulheres, nascidos e criados em democracia. Uns mais conhecidos do que outros. Diferentes sensibilidades políticas, de diferentes áreas de trabalho e geografias. Um retrato concreto, particular do quotidiano do Portugal que hoje somos, 47 anos depois da revolução. No Ep. 101 o programa conta com a presença da escritora Djaimilia Pereira de Almeida.
A liberdade está a passar por aqui (por Margarida Pereira)
No dia 25 de abril de 1974 eu tinha sete anos e ouvi a palavra Revolução pela primeira vez. Logo pela manhã foi uma das primeiras palavras que ouvi nesse dia, quando a minha Tia, ouvido colado ao rádio, me dizia muito empolgada, “Houve uma revolução em Lisboa”. Ao que eu respondi com a pergunta que se impunha, “O que é uma revolução?”. Ela lá me explicou, penso, que os militares estavam a derrubar a ditadura. Toda uma aprendizagem política. Fiquei a saber que vivíamos numa ditadura, que isso era horrível, que havia algo de empolgante a acontecer que iria mudar as nossas vidas. A minha aprendizagem da palavra revolução estava assim indissociavelmente ligada a um momento que era bom, que era fantástico e que foi acolhido lá em casa com a alegria que se iria alastrar pelas semanas e meses seguintes. A euforia desses dias ficou indelevelmente marcada na minha memória do 25 de Abril: as manifestações de rua, as palavras de ordem – “o Povo unido jamais será vencido” – a exaltação das vozes. Na verdade, parecia que todos queriam (precisavam) de falar ao mesmo tempo, como as crianças. Foi um momento de alegria coletiva, não há dúvida, de que bem me lembro. Aprendi outras palavras boas nesses dias, mas a mais presente, a mais marcante foi certamente a palavra Liberdade. Era uma palavra omnipresente nesses dias, como fica claro em algumas das canções que passamos a ouvir, como estas do Sérgio Godinho.
Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza, Aqui onde há somente Ondas tombando ininterruptamente, Puro espaço e lúcida unidade, Aqui o tempo apaixonadamente Encontra a própria liberdade.
O Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC) tem disponibilizado no YouTube, depoimentos de escritores/as e pesquisadores/as sobre a ditadura no Brasil. Os depoimentos de mulheres como Maria Valéria Rezende, Tânia Pellegrini, Eurídice Figueiredo e Ilana Heineberg já encontram-se disponíveis e ainda há diversos outros a serem divulgados.
Tomando a 13.ª edição da revista Heresies como ponto de partida, esta exposição propõe uma reflexão fértil acerca da triangulação entre arte, ecologia e feminismos. A exposição Earthkeeping /Earthshaking - arte, feminismos e ecologia pretende, assim, afirmar o papel pioneiro desempenhado por numerosas artistas neste âmbito específico e, ao mesmo tempo, problematizar a operacionalidade do seu contributo no presente. Assim, a exposição reúne um conjunto de obras e de material documental de artistas que – através da articulação de olhares e práticas bastante heterogéneos – questionaram, nos anos 70 e início dos anos 80, a relação do indivíduo ou colectividade com o ambiente natural, as dicotomias entre natureza e cultura, a associação tradicional do feminino com as forças da natureza, as relações complexas entre capitalismo avançado, histórias coloniais e destruição do ambiente.
“A tradição dos oprimidos ensina-nos que o «estado de excepção» em que vivemos é a regra”. Hoje, esta constatação de Walter Benjamin no texto Teses sobre a Filosofia da História[1] (que se referia ao avanço do fascismo na Europa na primeira metade do século XX) faz mais sentido do que nunca, e não é por acaso que a pertinência e actualidade das reflexões de Benjamin tem vindo a ser sobejamente notada. Enquanto nos sentíamos ainda em pleno «estado de excepção», fruto da pandemia que remeteu milhões ao espaço doméstico, fomos assolados sucessivamente por uma tomada de consciência dos «estados de excepção» que faziam já parte do mundo em que vivemos, o nosso mundo, o mundo actual, e não o mundo ‘histórico’ que vemos como pertencendo a um passado longínquo e ultrapassado. Esta é ainda a narrativa em que escolhemos infelizmente acreditar: a narrativa da progressão linear da história que se dirige a uma melhoria da sociedade que tomamos como garantida. Com o passar do tempo, e à medida que vários «estados de excepção» foram sendo expostos ou denunciados – a pobreza, a discriminação, o trabalho precário, a violência doméstica, as assimetrias no acesso à educação, o total esquecimento das margens da sociedade quer no discurso, quer nas medidas de combate à pandemia -, fomos percebendo que o nosso «estado de excepção» não era o «estado de excepção» de tantos outros. O nosso é recente e temporário, o dos outros, de tantos outros, é constante e sistémico. Como o racismo.
O tsunami mundial provocado pelo assassinato de Georges Floyd nos Estados Unidos da América provou que o racismo é de facto assunto tabu, que preferimos ignorar ao invés de enfrentar. Ou não tem sido constante a negação da existência de racismo em Portugal????? O problema, parece-me, ou uma parte dele, é que falar de racismo, reconhecê-lo como presente em nós, perpetuado por nós, implica um exercício de humildade; implica olhar sem filtros para o nosso privilégio, o privilégio do nosso recente e confortável «estado de excepção», reconhecer as várias camadas desse privilégio para, lenta mas consistentemente, o ir enfraquecendo até à anulação.
Este desafio que enfrentamos enquanto sociedade é, também, o grande desafio do feminismo hoje – o desafio da interseccionalidade, para usar um chapéu que nos abrigue a todxs. Este é um desafio que devemos abraçar enquanto investigadorxs académicxs reconhecendo que não pode haver feminismo que faça tábua rasa da sua intersecção com o racismo, com a luta de classes, com os movimentos LGBTI+, e por aí fora.
E, por sua vez, o desafio da interseccionalidade que se coloca ao feminismo de hoje, não só mas também e de forma bastante premente no contexto académico (que é o contexto a partir do qual falo), é também um dos grandes desafios da investigação. O ponto de vista da interseccionalidade tem não só que contaminar a nossa acção enquanto investigadorxs, mas tem também que contaminar o campo da educação, o que implica esbater fronteiras entre investigação e educação – trazer para a sala de aula de todos os níveis de ensino (independentemente da forma que esta assuma) a complexidade do mundo em que vivemos, as diferentes perspectivas da história e das estórias contadas, as questões fracturantes, desconfortáveis e que nos põem a todos em causa. E é a forma como enfrentarmos estes desafios que vai determinar, em grande parte, a relevância do nosso trabalho enquanto investigadorxs.
[1] In Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, ed. Relógio d’Água (Lisboa: 2012). Tradução de Manuel Alberto.
Neste quotidiano de tempo dilatado, nós, os professores, somos talvez os menos ociosos, horas a fio diante do computador a desbravar plataformas, o zoom, o collaborate, o blackboard, e por aí fora! Livros empilhados nas nossas (outrora) salas de jantar ou salas de estar, agora, como dizia uma colega com muita graça, transformadas em ‘salas de aula, biblioteca, recreio, e até esplanada’.
Como quase sempre deles (de nós), fala-se pouco. Estamos sim, na linha da frente. Sem sombra de dúvidas. Não curamos feridas nos corpos, não colocamos ventiladores e máscaras de oxigénio, mas sujamos as mãos continuamente segurando as mãos dos jovens e das crianças diante de quem todos os dias nos sentamos, cara alegre, banho tomado, cabelos alinhados, perfumados até, para discutir ‘O Crime do Padre Amaro’ ou ‘A Fada Azul’, ou mesmo ‘Os Lusíadas’, ou o passé simple e o passé composé, os malvados dos ‘phrasal verbs’, ou quicá as conjunções adversativas e copulativas…!
E os miúdos tontos de sono, inquietos e espantados ainda com a nova ordem das coisas que os impele agora a sentar horas a fio diante do computador, ou da televisão, infelizmente sem ser para fazer videogames!
Mas o mais estranho de tudo é que os jovens estudantes de facto colaboram! Não faltam às aulas (lá está a mãe para dar dois gritos e pô-los da cama para fora …) e sem querer idealizar a questão, mas pelo que me é dado ver e viver, professora que sou, dedicam-se a fazer excelentes power points, como nunca antes, enviam diligentemente os ensaios pedidos para professores e colegas. Não sou psicóloga, não me cabe fazer essa análise, apenas constato o facto, e com imenso regozijo. Será que as aulas ‘dadas à distância’ são menos ‘chatas’? será que os jovens, mesmo os mais pequenos, sentem a responsabilidade do tempo presente que também não os poupou, crianças que são? O que é certo é que as coisas funcionam! E perguntem às mães sobretudo, o que fariam sem estas horas de aulas em que s filhos estão entregues (virtualmente ou não, pouco importa) aos professores! Atrevo-me a dizer, psicóloga que não sou (e curiosamente psicólogos e sociólogos têm estado muito silenciosos neste país, estranhamente, a meu ver), dizia, é o momento do colectivo também para estes jovens, o espaço possível de rever, mesmo sem poder tocar, colegas e amigos, trocar ideias, sentir que o tempo flui numa quase ‘normalidade’. Com tpc e avaliações para cumprir!
Episódios divertidos acontecem a todo o momento: um dia é o gato da casa que se consegue escapulir e passeia desavergonhadamente em frente ao ecrã, pisando as teclas do computador e criando o caos! Outro dia é o cão o vizinho que ladra e não se pode ir lá bater à porta e exigir silêncio, cortesmente ou aos berros. Outras vezes é um telefonema trágico que interrompe a aula, um familiar que foi internado ou pior ainda.
E nós, professores, pegamos nas mãos deles, creio que não só virtualmente, e dizemos fazendo das tripas coração: ‘Vamos lá, malta, quero ainda ouvir-vos falar hoje da insubordinação contra a ética Vitoriana na Jane Eyre de Charlotte Bronte!’.
A Pinacoteca de São Paulo, museu da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, apresenta distância, primeira exposição de vídeos e filmes pensada especialmente pelo museu para os meios digitais para ser apreciada pelo público durante este período de confinamento social. É também a primeira vez que o museu realiza uma mostra apenas online. A ação inédita reúne cinco trabalhos do acervo que poderão ser vistos a partir da próxima terça-feira (12) até o dia 3 de agosto no site www.pinacoteca.org.br. A curadoria é de Ana Maria Maia.
Os selecionados são: Da janela do meu quarto (2004) de Cao Guimarães; O batedor de bolsa (2011) de Dalton Paula; Tarefa I(1982) de Leticia Parente; 9493 (2011) de Marcellvs L.; e A banda dos sete (2010) de Sara Ramo.
No vídeo Tarefa I, de Letícia Parente o sentido de distância extrapola os limites físicos e entra no campo social e uma empregada doméstica negra passa roupa da artista sem tirá-la do corpo. O movimento causa estranheza e propõe uma reflexão sobre o legado da servidão.
Leticia Parente (Salvador, 1930 – Rio de Janeiro, 1991) Tarefa I, 1982 Vídeo. Duração: 1’56” Doação dos Patronos da Arte Contemporânea da Pinacoteca do Estado de São Paulo 2017, por intermédio da Associação Pinacoteca Arte e Cultura – APAC, 2018
Covid-19 e clausura fascista, xô, xô! Vade-retro, satanás!
E, no entanto, o confinamento social e a clausura da prisão política não são a mesma coisa. Nem sequer se parecem. Estar confinada nos meus 100 metros quadrados é muito diferente de estar enclausurada nuns exíguos 9 metros quadrados, com uma janela gradeada, que apenas me deixava espreitar uma barreira de terra e que me barrava o mundo, o céu e o sol. Agora eu disponho de televisão, internet, música, jornais, livros e telefone. Agora eu sou uma cidadã de pleno direito, de corpo inteiro e não um pseudónimo. Agora eu converso com a família e os amigos, sempre que me apetece e acerca de tudo o que quero; e não estou vigiada, como acontecia durante as conversas habilmente cifradas (para que não fossem abruptamente interrompidas) – aquelas conversas semanais, limitadas a 20 minutos, com apenas dois familiares, de quem eu estava separada por um vidro, e que decorriam na presença tirânica de uma guarda e dois agentes da PIDE, numa atmosfera única, que dificilmente conseguimos transmitir.
Não pensem nunca que o “confinamento Covid-19” é ou foi semelhante. Não é. Há uma diferença abismal. Sofrer a amputação total de liberdades, num quadro altamente repressivo de um regime fascista, é radicalmente diferente de estar condicionado em alguma liberdade de movimentos, por razões de ordem sanitária, num Estado democrático. Essa é uma comparação que até dói. A mim dói-me, mas eu falo por mim, pois cada um sabe de si (embora esteja certa de que seremos muitos a sentir o mesmo). Foi a lembrar-me do que ouvira contar aos meus amigos – que penaram duras penas, durante meses, nos curros do Aljube, em cubículos com 1 metro de largura – que eu encontrei alguma força, 3 anos mais tarde.
Em Caxias, eu estive 5 meses e meio quase sempre sozinha, tendo por distracção pouco mais do que os meus pensamentos e umas quantas formigas que, lá fora, corriam e contornavam as florzinhas amarelas – um mundo a dar vida à terra da barreira, erguida a um metro da minha janela. Elas eram tudo o que eu podia ver da Natureza. Elas eram a Vida possível ali na minha frente, um deleite supremo para os meus olhos, mesmo que sofresse o constrangimento provocado pela presença constante de um guarda da GNR que nos olhava, lá do cimo, enquanto caminhava na sua rotina de nos vigiar.
Nenhum dos antifascistas que passaram por um período de isolamento total esquece o que sentiu, o que isso significava. Não foi o meu caso, mas houve companheiros que sofreram mais com o isolamento do que com as torturas.
Para sobreviver, cada um de nós criou as suas próprias rotinas e foi graças a elas que o ânimo não quebrou, nem se endoideceu. Eu pouco tenho para contar das minhas – eram tão pobrezinhas, que são até difíceis de descrever.
Eu a agarrar-me a uma única ideia de salvação da minha saúde mental: a de que, com o meu presente, eu estava a escrever o futuro – o meu próprio e, seguramente, o de muitos outros
Foram meses e meses a inventar o que fazer para cortar o vazio, um tempo cheio de nada, de coisa nenhuma além de inquietação. Meses à espera de vir a ser, ou de não ser, levada a Tribunal Plenário. Foram dias em que vivi realmente a sós comigo, a aturar-me (como pude) no desânimo e na raiva, e a animar-me, recorrendo a todas as armas psicológicas e ideológicas que tinha levado para dentro da prisão. Hora após horas, a fugir da profunda tristeza de um dramático passado recente, sem poder dividi-la com ninguém; ela a voltar sempre e eu a agarrar-me a uma única ideia de salvação da minha saúde mental: a de que, com o meu presente, eu estava a escrever o futuro – o meu próprio e, seguramente, o de muitos outros. Mas eles não cediam e eu também não. Hoje, no confinamento, se precisasse de desabafar, eu pegava no telemóvel e tinha dezenas de pessoas com quem, segundos depois, podia fazê-lo.
Oh, amigos, isto agora é tão diferente!
Passámos por um “estado de excepção” e por um “estado de calamidade”, e nunca deixei de acordar na tranquilidade que me é oferecida por cada dia saudável, fruto do confinamento (provavelmente ainda exagerado), que me imponho… – Agora, tudo depende apenas de mim, do meu querer, da minha força para me manter em segurança. Mas no Forte de Caxias, mal acordava e ouvia os passos da guarda, já o coração me pulava dentro do peito. Aí vem ela… (“prepare-se para ir a lisboa”…). Uma ansiedade diária, durante meses: «Será que é hoje que vou para a tortura? Tomara entrar, de vez, “no sono”». A solidão era permanentemente invadida por um misto de medo e da forte vontade de despachar aquela horrível inevitabilidade. Actualmente, confortavelmente confinada num apartamento – e fosse até num casebre … – dou-me ao prazer de fazer um bom assado, escolher um bom vinho e, sem pressas nem horários (quantas vezes, a trocar o Sábado pelo Domingo), entrego-me ao gosto de me acomodar num sofá com um tabuleiro, a ler um livro, a ouvir música ou, simplesmente, a ver o sol tornar-se vermelho no horizonte. Agora, enquanto envelheço, sozinha, insistindo ainda num rigoroso confinamento – porque quero fruir tudo o que a Vida continua a dar-me e é tanto! – falo com os meus filhos e faço projectos para um reencontro próximo. A quebra do confinamento total acontecerá quando os três quisermos, porque somos livres de decidir: apenas o nosso amor, cruzado com o sentido de cidadania, lhe imporá limites.
Há dois meses que encho o quotidiano de afazeres que têm um sentido prático, mas não deixam de ser prazerosos. Não há comparação com as rotinas da cela, em Caxias…
Lá, os hábitos do quotidiano, que criei para sobreviver, funcionavam como um refúgio para repouso emocional. Durante os meses em que eles não desistiram de obter da minha boca as confirmações que pretendiam, nada quebrava a minha rotina na cela, salvo as idas para interrogatório. Nos intervalos de dias, entre essas viagens a Lisboa, passava muito tempo deitada em cima da cama, acordada, entretida com os meus pensamentos – muitos, sei lá, hoje, onde eles me transportavam… – e, por momentos, voltava a ser uma pessoa realmente livre. Sem limites, de frente para mim, e com medo de ter medo, embalava nas recordações do amor a quem me queria muito; e recuava ao tempo em que estava segura do que me movia – do que, afinal, me levara àquela situação. Em breve, via chegarem-me as forças de que tanto precisava para conseguir manter a confiança na organização e no futuro da Humanidade, apesar de algum desmoronamento, que me trazia tanta preocupação e dor. De manhã, entre um cigarro e outro, lavava roupa, as roupas negras da viuvez que continuavam a acompanhar-me. Lembro-me que, ao fim da tarde, ia às grades e cantava, cantava muito e a plenos pulmões: “Quem canta por conta sua canta sempre com razão, mais vale ser pardal na rua que rouxinol na prisão” – O que eu gostava! Cantar era uma forma de dizer às companheiras da cela ao lado que ainda ali continuava, ou que já tinha regressado da “tortura do sono” (como um dia aconteceu). A proximidade da secretária das guardas impediam-me outra forma de comunicação.
E, na expectativa de me manter fisicamente resistente para mais outra dose de “o – que – desse – e viesse”, lá por Lisboa, eu fazia ginástica: saltos à corda sem corda, exercícios de pernas e de braços ou rodando a anca, imitações do que tinha aprendido no liceu. A meio da tarde – oh, excelso prazer! – deliciava-me com o nescafé que fazia no púcaro de alumínio, e que bebia enquanto amassava miolo de pão, com as pontas dos dedos, e via nascer, nas minhas mãos, as flores e os cestos. Alinhava-as no cimento do chão, à espera de secarem, sem cor, pois a pidesca direcção do Forte nem aguarelas me deixara entrar, para poder pintá-los. Um dia, já perto da minha libertação, autorizaram-me a entrada de uma agulha de crochet e dois novelos de linha lilás, e a minha vida na cela ganhou outra dimensão: fazia sacos de guardanapos, em série. Mas, até ao fim dos 5 meses, continuei sem livros, sem jornais, sem canetas ou lápis, sem papel, sem pano ou linhas ou tesouras, sem lã para tricotar. Vi recusado tudo aquilo que pudesse distrair-me. Tudo para o que, sem excepção, eu solicitei permissão de entrada. Entretinha-me, então, a espreitar pelas frinchas da madeira da minha porta, a ver vultos, a ouvir as conversas das guardas, a ver quem aparecia à porta da cela da frente, quando ela se abria (foi assim que soube da prisão da minha camarada Aida Paulo).
Cinco meses em que não soube o que era o recreio, sem respirar o ar exterior à cela. Minto: quando ia aos interrogatórios, na Rua António Maria Cardoso, mudava de ares – na carrinha celular e no 3º andar da sede da PIDE.
Cinco meses sem dar um beijo ou um abraço à minha família. Cinco meses entre o desejo de passar ao chamado regime normal e a expectativa, direi mesmo a esperança, de que de repente me comunicassem que iria ser libertada sem ir a julgamento. Assim foi.
Nenhum de nós, resistentes antifascistas, esquece o grau de isolamento e solidão, em que, na ditadura fascista, muitos foram forçados a viver nas cadeias, durante meses ou anos
Depois da tortura, eles terão desistido de obter (comigo) os resultados que pretendiam, e o inspector do meu processo, Sílvio Mortágua, decidiu mudar-me para a cela de uma companheira desse mesmo processo. Porém, mesmo acompanhada, o regime de isolamento persistiu, até ao dia em que, já perto dos seis meses, o sinistro Sachetti, Sub-director da PIDE, me chamou a Lisboa. Era finalmente a libertação, após umas frases que ainda guardo na minha memória: «O que os nossos ouvidos ouviram e os nossos olhos viram não podem ser negados. Apanhámo-la em verde e, desta vez, vai embora…Vencidos mas não convencidos! Há-de cá voltar!»
Não gosto nada de estar sempre a recontar isto, a voltar a esses tempos. Mas é verdade que nenhum de nós, resistentes antifascistas, esquece o grau de isolamento e solidão, em que, na ditadura fascista, muitos foram forçados a viver nas cadeias, durante meses ou anos. Nunca esquecerei a mão da minha Mãe espalmada no vidro do parlatório, num adeus. Quantos se lembrarão com dor, ainda agora, dos beijos dos filhos colados no vidro? As crianças a chorar e os agentes da PIDE a apressarem a Mãe: “Vamos rápido! Acabou a visita! Senhora guarda, leve a presa!”
Oh, amigos, o confinamento sanitário é tão diferente! Acreditem: aquele era um isolamento não comparável com este que se vive no presente. É imperioso recordar tudo o que se viveu – isto e muito, muito mais – e só aceitei fazê-lo porque sei a importância que têm todos os testemunhos, quer daqueles que mais sofreram na Ditadura, quer dos outros, os que menos sofreram. Trata-se de uma pedagogia política contra o regresso do fascismo.
E, no entanto …
Hoje somos velhos e, naquele tempo, éramos jovens. Durante o regime fascista, os jovens da minha geração, que lutavam na Resistência, apareciam nas notícias clandestinas da repressão. Agora, os mesmos cidadãos, idosos entre os mais velhos dos velhos, procuram fugir de entrar na contabilidade diária dos óbitos…
Este assassino das nossas vidas não tem um rosto. Tem um nome, mas não é uma entidade tangível, ou um ser vivo ao qual possamos assacar a primeira ou a última das responsabilidades. Unidos no seu combate, enfrentamos um flagelo que irá deixar, possivelmente, milhões de vítimas e que, na sua extensão geográfica, não tem semelhanças com qualquer outro, daqueles que vivemos ou conhecemos no passado. (Talvez a Pneumónica, de que ainda ouvi, na família, relatos vivos). O certo é que, quando imaginávamos que o maior dos sofrimentos colectivos poderia, no futuro, provir de catástrofes com origem nas entranhas do Planeta ou decorrentes de erros da Humanidade, vemo-nos de repente a lutar, corpo a corpo, com um inimigo invisível, um infinitamente pequeno, de dimensão inimaginável, que se abeira de nós e ora nos mata, ora nos esmaga, ora nos amedronta. E, curiosamente, para vencê-lo, pedem agora às mulheres e aos homens da minha geração, que ajam completamente ao invés do que aprenderam a fazer para vencerem o regime em que nasceram, cresceram e que viram cair (ou ajudaram a tombar). «Não enfrentem a besta, fujam, escondam-se dela e ela morrerá» – dizem-nos, de todo o mundo. Assim fazemos, alguns de nós, beneficiando de hábitos de disciplina adquiridos nas lutas da juventude.
E eu sei (ou espero) que, mais uma vez, possa este combate em união ter uma vitória certa. Protejo-me por todos os meios, fecho-me e isolo-me em casa, dias e dias, meses e meses, se for preciso. Não escondo a dor forte da ausência dos meus queridos filhos, uma dor a que eu nunca pensei ter de regressar. Vou, aos poucos, e confiando no SNS, tornando menos rigorosas, (ou novamente mais rigorosas, se for preciso), as medidas de confinamento, persuadida de que, para já, assim tem de ser, se queremos defender-nos e defender a comunidade. Custa, sim, mas adoro viver. Conforto-me com a expectativa da vacina e vou buscando alento ao enorme sentido de cidadania e aos gestos de solidariedade, revelados diariamente pelos povos de todo o mundo. Emocionam-me. Tal como dantes, como sempre, como em todas as lutas em que a Humanidade se agiganta.
Pessoalmente, tenho bem presente que este sacrifício duríssimo tem um objectivo impregnado de humanidade e que é infinitamente menos difícil do que o fascista “isolamento prisional” nos exigia. Esse pretendia esvaziar-nos da nossa dignidade, era entrecortado com a tortura e fazia parte do quadro de terror em que o regime da Ditadura lançava os presos políticos, para lhes impor a submissão, a denúncia e o medo.
Galeria Luisa Strina – ANNA MARIA MAIOLINO “É O QUE É”, 2019
Estreia online na quarta-feira, 20 de Maio, às 11:00 H Em comemoração ao aniversário da artista
“É O QUE É” é o título do mais recente vídeo produzido por Anna Maria Maiolino. Ela define esse trabalho como “a-documentário” ou “entre -documentos” e faz parte de uma pequena série de vídeos na qual a artista se associa ao real como motivador poético da obra.
A maneira livre como foi utilizada a câmera na captação de imagens evidenciam que nessa filmagem não há interesse em dar supremacia ao olhar. O vídeo escorre entre a presença da morte e seus mistérios com os movimentos livres da câmera e os sons no espaço escuro da gruta do cemitério Delle Fontanelle. Os sons produzidos pela voz de Tania Piffer acentuam o sortilégio do espaço, e o vídeo, não obstante a não linearidade da narrativa vai adquirindo sentidos entre o irônico e o trágico.
A gravação foi realizada na visita que Maiolino realizou ao “Cimitero delle Fontanelle” em Nápoles que ocupa espaços dos subsolos da cidade. A peculiaridade deste cemitério não está somente no que você vê, mas em todas as histórias, anedotas e curiosidades que tem por trás da sua história como antigo ossuário que se estende por mais de 3000 metros quadrados. O sítio do cemitério preservou quatro séculos de restos mortais daqueles que não podiam pagar um enterro, vítimas das epidemias que frequentemente atingiam Nápoles. Ossos e crânios amontoados ficam à vista do visitante.
A ligação e sentimentos junto com ao imaginário da vida após a morte faz parte da vida cotidiana dos napolitanos e é integrante à cultura da cidade.
Então, a prisão. Como leu num texto da Praça da Canção, “de certo modo estava no (seu) posto”. Era, de algum modo, o reconhecimento. De uma grande responsabilidade política? Não. Daquilo que marcara a sua vida, porque não saberia ser de outra maneira: a extraordinária força dos porquês. Por Diana Andringa.
Ficha prisional de Diana Andringa.
Este é o décimo sétimo testemunho de uma série de mais de 20, a ser publicada pelo Esquerda.net. São relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura.
À medida que os testemunhos forem publicados, poderá consultar toda a série em: Mulheres de Abril. O próximo testemunho será publicado na quinta-feira, dia 11 de maio. Coordenação de Mariana Carneiro.
A extraordinária força dos “Porquê?”
As negras mãos dele, normalmente tão leves, tão cuidadosas, tinham-se transformado em estranhas bolas de carne e o sorriso, sempre presente quando falava connosco, mudara-se em soluços e lágrimas e arrepios sucessivos que lhe abanavam o corpo. Enquanto a mulher branca, indignada, procurava um remédio que lhe atenuasse as dores, o homem branco levantou-lhe as mãos lentamente, com uma doçura inabitual. “Desculpa”, murmurou, e a palavra era também surpreendente, porque nada fizera que a justificasse. Então, porque a dizia? Seria, não por ele, mas por alguém com cuja pele branca a sua se confundia? Porquê?
Houve também aquela frase da professora, ao mostrar os cadernos, limpos e cuidados, dos meninos da escola negra: “Eles não se podem dar ao luxo de não estudar.” Porquê?
Porque é que, em lugar de andarem de baloiço, como nós, eles capinam o jardim? Porque é que o cozinheiro negro diz que a filha nunca comeu um bife? Porque é que o velho de carapinha branca desce do passeio quando se cruza com a menina branca? O normal não seria o contrário? Porque é que um criado negro não pode fazer um recado à noite, por então não poder estar no interior da vila?
Porquê? Porquê?
Porque é que, no Puto, tantos meninos da escola primária andam descalços, mesmo no Inverno? Porque é que são esses as vítimas preferenciais das ponteiradas que as professoras desferem nos dedos inchados pelas frieiras? Porque é que, quando não lhes emprestamos os livros, não podem fazer os trabalhos de casa?
Porque é que, sob a bata, as meninas do colégio estão sempre bem vestidas, e aprendem línguas em casa em lições particulares? Porque é que os pobres a quem levamos alimentos para a Ceia de Natal têm tantos filhos, se o dinheiro é tão pouco que precisam dessa esmola? Porquê?
Diana Andringa com 3/4 anos, na varanda da sua casa no Dundo.
Há perguntas que não se fazem. Essa dos pobres, por exemplo. “A menina é malthusiana!” (“Quem será esse Malthus que, pelos vistos, citei sem saber?”)
O primeiro de muitos epítetos.
Outro foi “comunista”. Pois não escrevera no quadro, com outra colega, “Viva o Delgado!” ? (A verdadeira razão era ele ser aviador, e ela sonhar voar: “O que é ser comunista?”)
“Comunista”, também, ao após 1961 responder, a uma pergunta sobre o Estado Português da Índia, “Não há Estado Português da Índia.” (“Comunista é quem diz a verdade?”)
O pequeno mundo da infância sacudido por imagens de massacres. “Genocídio contra Portugal.” Memórias das mãos desfeitas pela palmatória, a escola segregada, os meninos que capinavam o jardim. “Do rio que tudo arrasa se diz que é violento, ninguém diz violentas as margens que o comprimem”, lerá mais tarde em Brecht, mas já o compreendera sem saber dizê-lo.
Na Faculdade, em 1964, falam-lhe de estudantes presos (“Estudantes presos? Porquê? Porquê?”). A alegria de ver um deles, Saldanha Sanches, voltar à liberdade. E depois, a 21 de Janeiro de 1965, logo de manhã, uma lista de nomes de colegas, de amigos, presos nessa noite. (“Porquê? Porquê?”)
A polícia diz que foram presos por serem comunistas. E então? “Porque é que não podem ser comunistas?” “Porque não.” “Porque não”, sempre lhe disseram, “não é uma resposta!”
Em que altura é que todos esses porquês confluem em algo que passa a ser rotulado de “atentado à segurança interna e externa do Estado Português”?
Quando se grita, alto, “Liberdade para os estudantes presos?” Quando se pintam cartazes exigindo a libertação dessas raparigas e rapazes cujo crime terá porventura sido, apenas, o de não aceitarem que “as coisas eram assim porque eram assim” e exigiam a mudança, um mundo melhor? Quando se participa em manifestações junto à prisão do Aljube, onde os colegas estão presos? Ou junto ao Tribunal da Boa Hora onde são julgados?
Diana Andringa quando voltou ao Dundo para preparar a rodagem do filme Dundo, Memória Colonial. Luanda, 2006. Foto de Zé Catanho.
Um amigo dá-lhe um livro: “Praça da Canção”. A dedicatória diz: “Para que um dia pense assim.” Estranho. Não encontra ali nada – para lá do estilo, da beleza das palavras – que não seja a mesma inquietação que a faz perguntar “Porquê?”
Há um dia em que chove demasiadamente, tanto que falha, até, o transporte para casa. Nos bairros frágeis ao redor da cidade, ruem barracas, morrem habitantes. Os apoios tardam. São os estudantes quem vai para o terreno, junto com os bombeiros, tirar lama, desenterrar cadáveres, vacinar populações. Senhoras da Cruz Vermelha, impecáveis nas suas fardas, evitam sujá-las enquanto entregam víveres insuficientes a famílias sem nada. Nas zonas ricas, cai um único muro. “Porquê? Porquê? Porquê?”
Tem já respostas teóricas para a pergunta, mas só uma – pueril, talvez – lhe interessa: “Porque é que tem de ser assim? Porque é que se aceita que tenha de ser assim?”
Os irmãos, os amigos, partem para uma guerra em que a razão cabe ao adversário. Chegam-lhe as histórias de outros massacres, os das “nossas tropas”. Fotografias de cabeças de negros espetadas em paus ou usadas como bolas de futebol. E as orelhas cortadas guardadas em frascos… Porquê? Porquê? É essa a superioridade cultural do homem branco?
Amigos presos, torturados, destruídos pela impossibilidade de resistir à tortura. Em fuga de uma guerra que recusam fazer. A censura a impedir toda a informação sobre o que realmente importa. Porquê? E não basta dar um nome à ditadura, é preciso saber porque é que dura. Recusar toda a cumplicidade. Gritar não.
Então, a prisão. Como leu num texto da Praça da Canção, “de certo modo estava no (seu) posto”. Era, de algum modo, o reconhecimento. De uma grande responsabilidade política? Não. Daquilo que marcara a sua vida, porque não saberia ser de outra maneira: a extraordinária força dos porquês.
Diana Andringa, em 2007, com o seu auto-retrato feito na prisão de Caxias, em miolo de pão.
* Diana Andringa nasceu em 1947, no Dundo, Lunda-Norte, Angola, vindo para Portugal em 1958. Em 1964 ingressou na Faculdade de Medicina de Lisboa, que abandonou para se dedicar ao jornalismo. Em 1968, frequentou o 1º Curso de Jornalismo criado pelo Sindicato dos Jornalistas e entrou para a Vida Mundial, de onde saiu no âmbito de uma demissão colectiva. Desempregada, foi copy-writer de publicidade, trabalho que a prisão pela PIDE, em Janeiro de 1970, interrompeu. Condenada a 20 meses de prisão por apoio à causa da independência de Angola, voltou ao jornalismo. De 1978 a 2001 foi jornalista na RTP. Foi também cronista no Diário de Notícias, na RDP e no Público e fugaz directora-adjunta do Diário de Lisboa. Actualmente documentarista independente – “Timor-Leste, O sonho do Crocodilo”; “Guiné-Bissau: As duas Faces da Guerra” (co-realização com o cineasta guineense Flora Gomes); “Dundo, Memória colonial”, “Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”, “Operação Angola. Fugir para lutar” – regressou entretanto à Universidade, doutorando-se em Sociologia da Comunicação pelo ISCTE em 2013. Investigadora do CES-Coimbra.