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Nesta entrevista, concedida em Vila Nova de Cerveira, na Porta Treze, em novembro de 2019, Luandino Vieira fala sobre a adaptação dos seus textos pela cineasta Sarah Maldoror. Discute, igualmente, o poder repressivo da censura do Estado Novo e as estratégias usadas para a contornar, como a livre e clandestina circulação de textos, mesmo se em versões sem a chancela do autor. Recorda-se também a atividade da Casa dos Estudantes do Império, a função das ideias da “Négritude” na consciencialização política da geração de 50, e o contributo das mulheres para a consolidação da literatura angolana.
JP: Queria pedir-te para nos falares um pouco da forma como o teu livro, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961), se tornou um filme pela mão de Sarah Maldoror. Como é que foi o processo? Tu estavas preso quando escreveste o livro… Como é que o manuscrito chega até Sarah Maldoror?
Luandino Vieira: … Estou a tentar organizar a resposta de maneira a ser curta. O livro foi escrito ainda em liberdade. Foi terminado no dia 10 de Novembro de 1961. Foi começado em Luanda, mas foi terminado em Lisboa, onde eu estava nessa altura. Fui preso no dia 20 de Novembro… e o manuscrito ficou com a minha mulher, que o dactilografou, e enviou, não sei para quem. Só sei que muitos anos mais tarde, isto é, em 68, talvez 69, o manuscrito chegou às mãos de Mário Pinto de Andrade. Mário Pinto de Andrade fez publicar a versão em português, com o título a Vida Verdadeira de Domingos Xavier, e o autor era Mundele Kwanza. Eu estava preso, e eles não publicaram com o meu nome para não haver mais confusões como a confusão que houve por causa do Luuanda. Entretanto, o Mário trabalhava na Présence Africaine, e ele e uma senhora francesa fizeram a tradução para francês. O livro foi publicado pela Présence Africaine por esta altura, 68, 69 (se estivesse em casa iria buscar um exemplar e via, assim não sei). E o Mário vivia com a Sarah, Sarah Maldoror, uma jovem cineasta de… Martinica?
JP- Guadalupe…
Luandino Vieira: Guadalupe! Confundo sempre! E a Sarah, vivendo com o Mário, fazia parte daquele grande grupo de africanos que havia por Paris, que estavam todos incluídos no movimento anti-colonial, e que lutavam pelas independências nos seus países. Independências, auto-determinação, chamemos-lhe o que chamemos, queriam-se livrar do sistema colonial, que já era um sistema absolutamente obsoleto naquela altura.
JP – E depois? A Sarah viu o livro…
Luandino Vieira: A Sarah fez primeiro uma média metragem, ou, uma curta metragem, a preto e branco, com o apoio do FNL, da Argélia. Não sei se o fez em Argel. É o “Monagambé”, baseado num conto, “O Fato Completo de Lucas Matesso”, que está no meu livro Vidas Novas (1968), que também circulava nessa altura em Paris, numa edição mimeografada, de circulação clandestina. Depois dessa experiência, começaram a pensar fazer o Sambizanga.
JP – Mas onde é que ela foi buscar apoio financeiro?
Luandino Vieira: O apoio financeiro, logístico-financeiro, foi da França e do Congo. Mais tarde, depois do 25 de abril, houve sempre muitos problemas para fazer a distribuição do filme – e a exibição – porque não tinham os direitos. Os direitos eram de um produtor. Lembro-me que a certa altura um distribuidor português, o Cunha Teles, me disse, “- é difícil!”, porque o (produtor) francês achou que tinha ali uma mina de diamantes…
Mas o apoio logístico fundamental foi da República do Congo – Brazzaville, onde o MPLA tinha uma delegação. Era ali o sítio onde alguns militantes e guerrilheiros passavam, para descansar e curar doenças ou feridas, o que houvesse. Era normal convergirem ali e foi aí que se gizou o filme. Uma parte foi filmada…ou quase todo… foi feito ali, em Brazzaville. Os atores são militantes do MPLA. Há um miúdo, que se chega ao balcão, que é o general Paulo Lara, o filho do Lúcio Lara, e que agora é um “mais-velho”.
JP – Chegaste a conhecer a Sarah Maldoror?
Luandino Vieira: Sim, penso que foi em Paris…
JP – E qual foi o papel do Mário Pinto de Andrade como elemento de ligação entre os intelectuais de Angola e o ativismo em Paris? O que estou a ver é que há uma circulação, uma ligação, entre a Présence Africaine, Paris, os intelectuais do CEI (Casa dos Estudantes do Império) no exílio, e os movimentos no terreno.
Luandino Vieira: O Mário, naquela altura, ou era secretário geral ou presidente do MPLA. Naquela altura (do filme), não sei bem. Quando conheceu a Sarah não sei. Ele já estava em Paris. O MPLA sempre teve gente em Paris. Aí conviviam os das colónias portuguesas e os das colónias francesas, naquele tempo uns já independentes e que deram todo o apoio (às lutas de libertação), como se pode ver no livro de correspondência do Lúcio Lara, e alguns estavam na Alemanha e outros em Inglaterra.
JP – Então havia uma rede no exílio…
Luandino Vieira: Havia uma rede… havia correspondência entre todos e a ação política era concertada. Havia uma espécie de escritórios, que se chamavam “bureaus”…
A Sarah, penso que a conheci quando fui a Paris na altura em que se lançou a tradução do meu livro Nós os do Makulusu, portanto já depois da independência.
JP – Na edição que eu tenho do teu livro A Vida verdadeira de Domingos Xavier, referes que os teus livros circulavam na clandestinidade e que muitas vezes eram edições não autorizadas. Então tu não controlavas o processo?
Luandino Vieira: Em tudo isto eu não controlei nada. Tudo isto que eu sei, só depois da independência. Tudo o que contribuísse um pouco para o avanço da luta de libertação era feito, e obviamente não era preciso estar a pedir autorização a ninguém.
JP – Como é que tu vês os filmes de Maldoror enquanto obra de arte e não tanto como forma de militância?
Luandino Vieira: Eu gostei… Bom, isto são impressões de 1976, 1977, e contrariamente a outras opiniões eu gostei bastante do que ela fez. O primeiro, o Monagambé, a preto e branco, não sei se foi em 16 milímetros, era ainda um filme, do ponto de vista cinematográfico … Os outros que o viram comigo diziam que era um filme muito ingénuo, muito rudimentar. E acho que isso corresponde um pouco à própria história (escrita), que é uma história muito ingénua e muito rudimentar
JP: Mas ela é uma cineasta que está a começar e que não tinha assim muitos recursos! Também é um bocado injusta essa visão…
Luandino Vieira: Recursos não havia! E isso da justiça ou injustiça é uma questão de contexto. Se é uma obra de arte… não creio que seja uma obra de arte aquele filme; mas do ponto de vista cinematográfico parece-me ter mais unidade de estrutura e de desenvolvimento artístico do que o Sambizanga, que já é um filme com um guião mais complexo, já são muitas mais personagens e os locais em que se passa a ação, logo é mais difícil articular tudo isto de uma forma que seja fluida do princípio ao fim. Agora com os poucos meios que a Sarah teve para fazer o filme Sambizanga… basta ver que os atores são quase todos guerrilheiros e gente dali da base de Dolisie… a actriz … a…
JP: A Elisa Andrade
Luandino Vieira: Era a companheira do general Katyana[1]… Ela dá, no filme, o que eu acho que deveria ter dado como título ao livro, porque o livro naquelas circunstâncias e naquele momento histórico, e como contribuição para a luta de libertação (que era a que eu podia dar: escrever), o título e o desenrolar da ação dão a aparência de que é a história do Domingos Xavier, mas o Domingos Xavier morre aí a dois terços do livro. O livro, no fundo, é a história daquela mulher! Do princípio até ao fim.
JP: Exacto! Concordo totalmente.
Luandino Vieira: É verdade que o ator que faz de Domingos Xavier, que era o Domingos Oliveira, e que era mesmo assim, ele “enche a cena”, e mesmo que ela o quisesse pôr em segundo plano, é difícil com aquele ator, com aquela presença física. O que vale é que a Maria também, a atriz (a Elisa) tem muita presença. Portanto, numa primeira leitura, o filme mais do que o livro, favorece a representação da ação da mulher, a Elisa.
JP: Na altura, nos anos 70, lembras-te do impacto internacional que teve o Sambizanga?
Luandino Vieira: Não. Mesmo depois, quando cheguei a Lisboa e estava lá com residência vigiada ou liberdade condicional (ou lá o que se chama a isso, quer dizer, tinha de ir à PIDE todas as semanas para porem o carimbo numa caderneta), quando houve o “25 de Abril” o filme deu muita discussão, controvérsia, mas lembro-me que ganhou um prémio no festival de cinema de Cartágo[2]…
JP: Queria voltar um pouco àquela questão que afloraste, porque o Estado Novo proibiu os teus livros e, pelos documentos que me enviaste, também proibiu a exibição do filme. Gostaria que falasses um bocadinho das práticas da censura nesta tua longa experiência. Nem filme, nem livros, nem nada, não é?
Luandino Vieira: Nós estávamos habituados a isso lá em Luanda! Em Luanda, quando ainda éramos muito novos, fizemos o jornal “Cultura II”. Tomamos o velho jornal da Sociedade Cultural de Angola e voltamos a fazê-lo nos anos 58, 59 ou 60. E aí já estava a censura completamente instalada, a PIDE instalada, e percebíamos muito bem. Às vezes fazíamos duas versões, mandávamos uma à frente, que era para o choque dar os cortes todos, e depois quando íamos com a outra versão, ele já não via aquilo da mesma maneira porque sabia que tínhamos seguido as indicações da censura, corta aqui, corta ali… e às vezes… passavam. Estou-me a lembrar de uma página grande sobre poesia angolana em que nós não mandamos as gravuras, que eram uns linóleos, e a censura cortou, e nós publicamos os linóleos em lugar dos poemas, e passou, e se calhar os linóleos ainda eram piores do que os poemas, mas enfim.
Mas ainda durante aquilo que os portugueses chamam “a era marcelista”, em que houve uma certa distensão, uma certa abertura, ou pelo menos dizem que houve, o meu editor – que era também o único que ousou dar-me trabalho quando eu saí do Tarrafal (não encontrava emprego em lado nenhum), e esse editor, o Joaquim Soares da Costa, das Edições 70, deu-me emprego ali, e nessa altura, quando houve a dita abertura, ele ousou fazer uma nova edição do Luuanda… Foi logo apreendida. E estava um recurso pendente em tribunal, não sei que tipo de tribunal, quando houve o 25 de Abril, e pronto. Quer dizer que já muito perto (do fim da ditadura) ainda houve essa censura sobre o livro Luuanda. Não estou a falar da Vida Verdadeira de Domingos Xavier porque esse ele não se atreveu a publicar antes do 25 de Abril.
JP: Eu li que na altura se criticou o filme Sambizanga por não ser suficientemente ativista, não ser suficientemente comprometido. Tu não tens essa posição? Concordas com isso? Também é uma reação da altura, que tem de ser enquadrada historicamente…
Luandino Vieira: O livro só conta a história de um militante naquele meio socio-político de Angola, nos anos que antecederam o início da luta armada. Portanto, é um caso concreto. Agora, o filme… a Sarah quis ser fiel ao livro, demasiado fiel até ao fim, e quando chegou ao fim… O filme desenrola-se sobre uma história vulgar, banal, naquele contexto, com aquelas personagens, naquela época histórica. Era banal ser preso, era banal ser morto. Tudo aquilo era o dia a dia. Mas no fim, ela (Sarah Maldoror), para o filme ficar, como tu dizes, mais ativista, mete aquele plano, que está justificado porque todo o livro se passa junto ao velho Kwanza, e quase todos os cenários são do rio, mete aqueles planos finais do rio de águas revoltas a virar tudo…
JP: Que é uma metáfora da revolução.
Luandino Vieira: Pois, que era o 4 de fevereiro que estava a chegar… Eu não sei se em voz off ela diz isso …
JP: Sim, sim, refere-se o 4 de fevereiro numa imagem final.
Luandino Vieira: Já não me lembro. Já lá vão quase 60 anos!
JP: Havia mais mulheres a trabalhar na altura no cinema africano, além da Sarah Maldoror?
Luandino Vieira: Não sei. Eu do cinema africano conheço muito pouco, mesmo quando depois mais tarde estive na fundação do Instituto Angolano de Cinema, saí quando íamos começar uma ação de maior relação com outras cinematografias através da Cinemateca Nacional, que era uma instituição do nosso instituto, mas eu só contactei com um cineasta africano, de quem depois fiquei amigo, que foi Ousmane Sembéne. Mas foi como escritor que nos encontramos em Frankfurt. O Ousmane Sembéne era uma grande cineasta, e o Paulino Vieira, do Senegal…
Quando íamos começar mesmo a entrosar o cinema angolano com o novo grande cinema africano, bom, as condições da guerra civil não permitiram o desenvolvimento do cinema angolano e ficamos por aí. Hoje não sei como está.
JP: Queria terminar a parte relativa ao cinema com uma pergunta que diz respeito às políticas das cinematecas hoje. As cinematecas tendem a preservar o original de 35 milímetros, que está em roldanas, e que não é facilmente transportável, o que não permite que outros públicos cheguem até ao filme. Tu não achas que se deviam digitalizar esses filmes que são a história do cinema, por exemplo para um público de Angola ou Moçambique? As gerações mais jovens não deviam ter acesso a esses filmes?
Luandino Vieira: Estou inteiramente de acordo. Enquanto não houver um acesso fácil às produções culturais em todas as áreas que foram feitas ao longo dos séculos, não estamos numa linha de progresso. Não é preciso estar a inventar todos os dias a roda. Muitos cineastas conseguem, e ainda bem, de moto próprio, repetir coisas que se tivessem frequentado a ditas cinematecas teriam dito: “Oh diabo! Já alguém fez isto! Já alguém disse isto!”. Honra, a quem consegue todos os dias reinventar os irmãos Lumiére.
Agora, na minha opinião… isto no caso de Angola – em Portugal penso que já não é assim – tem de haver uma separação nítida entre o que são os arquivos, que são estruturas que precisam de tecnologias e condições caríssimas para poder preservar esses documentos históricos, falando só sobre cinema, mesmo a partir do momento em que se passou a digital, porque os originais em digital (também) vão levantar problemas de conservação… É verdade que a velocidade de reprodução é praticamente infinita…
JP: Sim, mas a questão aqui é a acessibilidade! Só quem for à cinemateca…
Luandino Vieira: É separar o que é dos arquivos. Os arquivos se cumprirem a sua função de preservar e preparar para difundir, depois as cinematecas fazem… As cinematecas são organismos de ação cultural, não são organismos de recolha de arquivos.
JP: Acho muito bem, e acho que é importante levantar essa questão.
Luandino Vieira: Por exemplo, às vezes penso, bom, vou morar, vou sair, vou para Lisboa, porque custa-me um bocado estar longe do cinema. Lisboa, porquê? Os portugueses podem considerar insuficiente, ou a precisar de renovação, seja o que for… Mas o que eu ouço da programação e da ação da Cinemateca Nacional Portuguesa, da Barata Salgueiro, eu se morasse em Lisboa, reformado, passava lá o dia a ver aqueles filmes, a ver aquelas obras que às vezes eles apresentam.
A questão do guardar, tudo quanto… não digo os artistas, tudo quanto o homem produz, que pudesse ser guardado… o tempo depois se encarrega de separar o que vale a pena. Mas o tempo também é muito traiçoeiro. Um século já chega! Um século não chega! Ou… dez dias chegam.
JP: Agora queria mudar de assunto. Queria falar contigo sobre a Alda Lara. Além de escrever, ela teve um papel de dinamizadora cultural na Casa dos Estudantes do Império, não teve?
Luandino Vieira: Sim! Dizem os que frequentavam a Casa dos Estudantes do Império que ela era muito ativa. Ela tinha uma ação pessoal que vinha da formação católica. Era uma pessoa atenta aos problemas dos desprotegidos e seguramente através da ação católica fazia a sua ação social. Como estudante e como artista ela era a principal animadora das ações culturais da Casa dos Estudantes do Império dizendo poesia. Ela declamava.
JP: Então ela era popular nesse meio.
Luandino Vieira: Eu não frequentava a Casa dos Estudantes do Império. Quem mo dizia era o António Jacinto que era muito amigo dela. Ficamos os dois destroçados, na cadeia, quando soubemos a notícia da sua morte.
JP: Achas que houve alguma marginalização da obra dela por ser muito confessional ou muito católica?
Luandino Vieira: Não.
JP: Sei que a poesia dela também não se enquadra na Negritude. Não foi, por exemplo, incluída nos Cadernos de Poesia Negra de Expressão Portuguesa.
Luandino Vieira: Mas aí também só estão três: Agostinho, Viriato, Jacinto.
JP: De mulheres, está por exemplo a Noémia de Sousa.
Luandino Vieira: Sim, mas ela é de Moçambique. Refiro-me à contribuição de Angola. O Mário foi buscar, e muito bem, o três que podiam estar ali. Aliás contrariando os clichés africanos da “Negritude”, porque, repara, o caderno abre com quem? Guillén!
JP: Porque é que, aparentemente, as ideias da negritude depois são postas de parte?
Luandino Vieira: A “Negritude” cumpriu a função necessária, num momento histórico preciso. Vou dizer de uma forma muito simplificada: “A sua função foi a reivindicação da cultura negra a um mundo mais que eurocêntrico, ‘white-centrico’!
JP: E depois foi preciso explorar outros caminhos?
Luandino Vieira: Mesmo que não quisessem, o processo histórico levava a isso. A Présence Africaine teve um papel importantíssimo no despertardessa consciência. O papel de consciencialização ninguém lho tira! O seu papel como forma de luta, também ninguém lhes tira. E também um papel aglutinador, porque havia muitas correntes dentro do movimento. Para mim, a “negritude” é o Cesaire. Para o Mário, era o Senghor. Para outros será Leon Damas…
O que me cativa em Cesaire é a forma como procurou demonstrar a dificuldade em separar raça de classe. O Fanon já trouxe um outro tipo de contributo.
Só estes nomes já serviam para demonstrar a vitalidade que a “Negritude” teve em tudo. E a influência da negritude ainda hoje está viva, nos debates da União de Escritores, no movimento LevARTE, no movimento ‘Literagris’ dos mais jovens… Algumas coisas muito incipientes, mas há ali a “negritude” como um dos legados que lhes ficou dos mais-velhos.
No caso das antigas colónias portuguesas, a particularidade de se conseguir a independência pela via da luta armada levou a um radicalizar de posições, mas isso também permitiu entender, mais tarde, as questões culturais de uma outra maneira.
JP: Sei que tiveste um papel de direção na televisão angolana. Quais eram as funções da televisão de Angola quando começou a funcionar depois da independência?
Luandino Vieira: A mim puseram-me como diretor numa fase de instalação da televisão angolana. Não havia nada. Começamos a trabalhar com os equipamentos que a RTP pôs de lado, a preto e branco. A função da televisão naquela época era afirmar a soberania nacional e fazer a educação para o mundo que íamos enfrentar através da televisão. Era propaganda e educação. O entretenimento era sobretudo para as crianças; os programas infantis, de produção própria, e desenhos animados, que importávamos. Isto em 75, 77, 78. Depois, sobretudo depois da morte de Agostinho Neto, a televisão tornou-se, por um lado, mais afunilada, e por outro, mais alargada. O fundamental eram os telejornais, o noticiário, e depois os programas que tentavam retratar a realidade socio-económica-cultural do país. A questão era quase devolver a realidade de Angola aos angolanos, porque quem estava num sítio não sabia o que se passava no outro. Angola é muito grande, e o problema era que sempre que tentávamos pôr repetidores dos emissores, a UNITA deitava as torres dos emissores abaixo. Aquela guerra não era a pedir licença…
JP: Dado que Angola tem várias línguas e várias etnias como é que vocês se organizavam? Traduziam? Tinham programas em várias línguas?
Luandino Vieira: A Rádio Nacional, desde o início, tinha programas em cinco, seis línguas. Na televisão, assim que tivemos meios para essa produção, também começamos a fazer programas em várias línguas. Hoje, a televisão internacional de Angola é na língua nacional de difusão internacional que é o português, mas internamente há programas em pelo menos seis línguas que são aquelas que já estão estudadas. A partir do ano dois mil, dois mil e tal, vi que tudo isso está em marcha de uma forma estruturada. Só falta introduzir as várias línguas nacionais no ensino. Pode ser que eu ainda veja …
JP: Se tivesses de fazer uma genealogia do contributo das mulheres para a literatura de Angola que nomes te ocorriam?
Luandino Vieira: Há muitas mulheres a escrever agora! Mas começando pelo início… as Cartas dos Reis do Congo, o Cadornega, Lima… no século XIX, já com a introdução na imprensa, não me lembro de ter visto grande colaboração nas letras, e depois, bom, nos Almanaques luso-brasileiros do final do século XIX e princípio do século XX já há vários nomes de mulheres, em pequenas coisas, e eram sobretudo de Cabo Verde. De Angola, o primeiro nome que me surge é de facto a Alda Lara. A União de Escritores Angolana tomou consciência de que era preciso ver a questão das mulheres. O Manuel Rui, honra lhe seja feita, chamou a atenção para a poesia da Ana de Santana, que eu não sei se continua a publicar, e que se deixou é uma pena. Na altura havia três poetas: A Ana Paula Tavares, que continua, a Ana de Santana, e uma médica que depois deixou de escrever. Mas havia mulheres que tinham coisas na gaveta como a Cecília Paes. E colaboravam várias nos jornais. Tentaram inclusivamente fazer um suplemento infantil, e tentavam fazer passar ideias progressistas no meio daquelas coisas para as crianças. As mulheres estiveram sempre empenhadas, a visibilidade é que era pouca.
JP: Não havia mulheres a escrever a chamada “literatura de guerrilheiro”?
Luandino Vieira: A que chegou mais longe em termos de expressão literária foi a Deolinda Rodrigues, guerrilheira e escritora.
JP: E a Alexandra Dáskalos?
Luandino Vieira: É da geração da Ana Paula Tavares, da Ana de Santana. Nós publicamos umas quatro ou cinco mulheres dessa geração entre 1980 e 1990. Agora, já foi possível publicar uma antologia só de poesia feminina, pelo movimento LevARTE. O problema é que a partir do momento em que se desenvolveu em Angola a possibilidade de edição gráfica, depois de 2002, o parque gráfico tem outra possibilidade de imprimir, mas as jovens do LevARTE já publicam online e podem trocar as suas experiencias online, mesmo se espalhadas pelo país. Era diferente no tempo dos Novos Intelectuais de Angola, em que nos reuníamos no mesmo sítio, fisicamente, para colaborarmos. Hoje em dia o movimento é o mesmo, mas com outros meios. Antes era diferente. Lembro-me que mostrei um poema ao António Jacinto e ele levou-me à biblioteca e disse “lê isto!”. Era As Vinhas da Ira, e depois percebi… O Jacinto era um grande leitor, e fundou com o Viriato e o Mário António o Partido Comunista de Angola, e eles tinham muito boas bibliotecas e recebiam livros…
JP: Como chegavam os livros? Como se contornava a censura?
Luandino Vieira: Havia uma livraria no Lobito-Benguela que conseguia, não sei como, ter os livros do Jorge Amada.
JP: Que foi uma grande influência em ti.
Luandino Vieira: O Jorge Amado foi uma grande influência em todos os escritores da geração de 50, mas o Jorge Amado era a figura aglutinadora. Nós lemos em simultâneo a Rachel de Queiroz, o Erico Veríssimo, o Graciliano, as Memórias do cárcere circulavamclandestinamente, tal como Os Subterrâneos da Liberdade[3]. A Lygia Fagundes Telles… Também revistas brasileiras como O Cruzeiro (1928-1975) e a Manchete (1952-2000) tiveram um papel importante. O grupo que estava em Portugal, em Coimbra e em Lisboa, mandava para baixo (para Angola) as edições doNovo Cancioneiro, da coleção Sob o Signo do Galo, a Editorial Inquérito, a Biblioteca Cosmos, que quando não era permitido à colónia importar aqueles livros – os livreiros não se queriam sujeitar a encomendar um livro que não podiam pôr à venda – só se conseguia chegar aos livros de uma outra maneira. Havia um livreiro que mandava vir isso, ao estilo da livraria Barata em Lisboa, que tinha livros que só se vendiam debaixo do balcão, a quem estivesse devidamente “credenciado”.
JP: Falemos agora um pouco das artes visuais. Que pintora angolana destacarias?
Luandino Vieira: Entre aspintoras angolas, a Delmira, mas havia uma francesa, Denise Toussaint, que esteve em Angola. Havia também um núcleo surrealista: o Cruzeiro Seixas, o Margarido e Soares Guedes. Fizeram uma exposição nos anos 50. Foi um escândalo. Fizeram uma exposição surrealista numa casa em ruínas, e tiveram o topete de convidar o Secretário Geral do Governo, e ele foi lá, para inaugurar aquilo. Pelos desenhos e pelas pinturas do Cruzeiro Seixas pode-se ver o que era aquilo. E eles foram corridos da colónia, mas a exposição deixou marca lá em Luanda. Nós, os miúdos, íamos vendo aquilo, bem… Era na parte dos colonos. Mas falando mais tarde com gente da Liga, da Anangola, da Associação dos Naturais de Angola (comentava-se): “Não, a gente viu aquilo!” – Era afrontar a ordem colonial.
O Cruzeiro e o Margarido…são conhecidas as posições do Margarido na análise da literatura angolana e na atividade que desenvolveu na Casa dos Estudantes do Império, com aquelas antologias todas que ele ajudou a organizar e para as quais escreveu os prefácios. Penso que na Antologia da Poesia Angolana o prefácio é dele. Foi publicado Angola, Moçambique, creio que de Moçambique foram duas, S. Tomé… Naquele tempo, essas associações, dentro das condições e dos condicionalismos que tinham, fizeram muito. É verdade que hoje se faz muito mais, mas é de tal maneira fragmentado! … Mais vale cair um nevão do que uma camada de granizo.
(Entrevista por Joana Passos)
[1] Carlos Heineken.
[2] O filme Sambizanga ganhou o primeiro prémio, o “Tanit d’ Or”, do Festival de Cinema de Cartágo em 1972. Em 1973 ganhou 2 prémios no Festival Internacional de Cinema de Berlim.
[3] De Jorge Amado.