The set of interviews conducted by the Womanart research team aims at capturing a testimony of the experience of living under the dictatorships of Portugal and Brazil as an activist. Some of the interviewed are writers, film makers, art gallery owners, journalists and visual artists. They reflect about their own personal experiences while remembering circumstances and struggles of that time past, extrapolating on the influence of such historical circumstances over their professional lives and works.
In what concerns a younger generation of interviewees, their accounts were steered towards considering contemporary interpretations of these regimes, as well as their after effects on current debates and agendas.
Ana Clara Guerra Marques é Mestre em Performance Artística – Dança, com a tese «Sobre os Akixi a Kuhangana entre os Tucokwe de Angola: A performance coreográfica das máscaras de dança Mwana Phwo e Cihongo», pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa.
Licenciou-se em Dança – Especialidade de Pedagogia, pela Escola Superior de Dança de Lisboa do Instituto Politécnico de Lisboa.
É autora dos livros “A Alquimia da Dança” (1999), “A Companhia de Dança Contemporânea de Angola” (2003), “Para uma História da Dança em Angola – Entre a Escola e a Companhia: Um Percurso pedagógico” (2008) e “Máscaras Cokwe: A linguagem coreográfica de Mwana Phwo e Cihongo” (2017).
Iniciou os seus estudos em dança na Academia de Bailado de Angola em 1970 e, em 1978, passou a dirigir a única Escola de Dança existente no país, atividade que desenvolveu a par da docência.
Da sua estratégia para a defesa e projeção da dança, enquanto linguagem artística e arte performativa em Angola, fazem parte a sua prática como bailarina e coreógrafa, fundando em 1991 a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, a primeira companhia profissional em Angola (e uma das primeiras em África).
A Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC Angola) foiconstituída em 1991 nas então estruturas do Ministério da Cultura, designada durante os dois primeiros anos como Conjunto Experimental de Dança (CED).
A companhia profissional independente, única em Angola (a quarta fundada no continente africano), constituída por bailarinos angolanos por si formados, foi desenvolvendo uma linha de trabalho singular. As peças criadas confrontam o público com as suas próprias histórias, aspetos do seu quotidiano, das suas realidades sociais, da sua condição de cidadãos de universos que se cruzam numa época em que as barreiras geográficas e culturais são superadas pelos recursos que nos disponibilizam as novas tecnologias. Estas, combinadas com outras linguagens, passaram a integrar os discursos artístico e estético da CDC Angola, onde o corpo e o movimento constituem o elemento catalisador.
A partir de estudos de investigação efetuados em várias regiões de Angola, Ana Clara Guerra Marques foi propondo diferentes vocabulários e novas linguagens, no âmbito das suas pesquisa e experimentação, apresentando outras possibilidades para a revitalização da cultura de raiz tradicional. Tem vindo, simultaneamente, a deslocar a dança para espaços não convencionais, levando o público a descobrir diferentes formas e conceitos de espetáculo, alguns em parceria com importantes nomes da literatura e das artes plásticas angolanas, entre os quais Manuel Rui Monteiro, Artur Pestana Pepetela, Frederico Ningi, Carlos Ferreira, Jorge Gumbe, Mário Tendinha, Francisco Van-Dúnem, Masongi Afonso, Zan de Andrade e António Ole.
A utilização da dança como meio de intervenção e crítica social, expondo o ser humano enquanto cidadão do mundo e protagonista da cena social angolana, está na base do trabalho da Companhia, que deu origem à rutura estética e formal da dança angolana, e que luta desde a sua criação contra os mais diversos obstáculos decorrentes da sua existência, num terreno conservador, fortemente cunhado pela quase ausência de um movimento de criação de autor ao nível da dança, praticamente absorvido pelas danças populares e recreativas urbanas.
A CDC Angola resiste numa condição de sobrevivência sem qualquer tipo de apoio institucional, mas, apesar das adversidades, e consciente da importância da sua missão inovadora, aponta novos olhares sobre a dança, tornando-se em 2009 uma companhia de Dança Inclusiva, pela integração de bailarinos portadores de deficiência física.
1 – Pode descrever-nos como se iniciou o seu percurso na dança?
R. O meu contacto com a dança deu-se, ainda na Angola colonial, através da Academia de Bailado de Luanda, que era a única escola profissional existente em Luanda. Tinha 8 anos de idade. Depois da independência, o ensino da dança em Angola foi retomado pelo estado e inscrevi-me na Escola da Dança do então Conselho Nacional de Cultura. Um ano e meio depois, era indicada para dirigir essa mesma escola, pois a professora / directora havia partido para Portugal. Começou aqui a minha “missão” na luta pela profissionalização da dança em Angola.Tinha eu 15 anos de idade.
2 – Qual era a posição da mulher na dança na época em que começou a trabalhar?
R. Eu comecei a trabalhar no início de vida de um país, onde a luta pela igualdade de classes e pela emancipação da mulher eram duas das metas traçadas. A dança existia apenas na sua forma patrimonial / tradicional e popular, onde as diferenças de género eram determinadas pela própria estruturação socio-cultural de cada grupo etno-linguístico. A dança, na sua dimensão teatral e profissional não existia. Portanto, estava nas minhas mãos instituir, antes de tudo, a dança nos seus planos pedagógico (enquanto directora e professora da única escola do país) e cénico (enquanto bailarina e coreógrafa). Digamos que eu estava numa situação de “Pole position”, mas sem companheiros de “corrida”!
3 – Veio a abordar questões relacionadas com a ditadura no seu trabalho? De que pontode vista?
R. Antes de mais é importante dizer que o meu trabalho, quer enquanto professora, quer enquanto coreógrafa foi sempre, de algum modo e em simultâneo, condicionado e inspirado por uma certa ditadura. Qualquer ideia ou decisão tinha de ser aprovada / censurada em “instâncias superiores” as quais, na maior parte das vezes, por falta de conhecimento sobre estas áreas mais sensíveis, tinham a mão bastante pesada. Estes impedimentos e policiamentos constantes passaram a ser recorrentes enquanto material de inspiração para o meu trabalho criativo. Enquanto coreógrafa utilizo frequentemente o humor para retratar personagens e contextos quase reais, colocando o público num desequilíbrio entre o hilariante e o dramático. Esta foi sempre a única forma de sobreviver num ambiente de ideias e conceitos absolutamente espartilhados.
4 – Várias décadas depois do 25 de abril, e desde o contexto que é o seu, há contributos sobre a ditadura, direta ou indiretamente, na dança que contribuam para um melhor entendimento do tempo em que vigorou, entre os anos 30 e os anos 70?
R. No que diz respeito à criação de autor, não. Na então província portuguesa, Angola, a dança profissional não tinha qualquer tradição. Além da Academia de Bailado que era, como acima referido, a única escola de vocação profissional, existiam alguns estúdios particulares com um carácter mais lúdico. Nunca se constituiu uma companhia de dança profissional, à semelhança do que se passava no teatro, por exemplo. Angola foi visitada pelo Ballet Gulbenkian, nos anos 70, o qual se apresentou em Luanda e em mais duas cidades com as usuais peças de repertório como O lago dos cisnes, O quebra-nozes ou o Mandarin maravilhoso. Localmente existiam alguns grupos “folclóricos” cujo enquadramento no CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola) pode considerar-se expressivo no que respeita ao olhar colonial sobre o património cultural locais. O carnaval, manifestação popular, é um dos eventos mais expressivos de leitura da ditadura colonial em Angola, o qual conserva marcas evidentes (principalmente a nível do vestuário e adereços) de uma ocupação europeia. Entre estes grupos existiam alguns (dos quais o mais antigo é o União Operário Kabocomeu) cuja dança característica, a Kazukuta, era uma forma de contestar o regime. Os dançarinos, vestidos com fatos pretos, máscaras de europeu, cartolas, botas e sombrinhas, satirizavam o poder colonial e os seus agentes políticos, em especial a classe do patronato.
5 – Acha que a sua experiência enquanto mulher, mas também enquanto artista influencia a introdução de novas abordagens a estas temáticas (totalitarismos)?
R. Não tanto enquanto mulher, mas enquanto artista alinhada e inspirada por outros colegas em todo o mundo que usam a arte como forma de alerta e intervenção, estou absolutamente convencida de que sim. É da história que as artes e os artistas marcam presença permanente na vanguarda das grandes mudanças e alterações sociais. No mundo actual, onde os movimentos racistas, fascistas, xenófobos, homofóbicos, etc. voltam a ganhar visibilidade, a nossa intervenção volta a ser fundamental.
6 – Há no seu trabalho em concreto reflexos da questão do papel da mulher na sociedade em relação com a ditadura, com as suas narrativas e com os seus reflexos na contemporaneidade?
R. Sim, há. Nas peças que assino para a CDC Angola o tema do feminino aparece frequentemente, bem como a situação da mulher, sobretudo na sociedade angolana que é fortemente machista. Normalmente preferencio abordagens caricatas mas que mostram bem como a nossa sociedade olha e determina o “ser mulher”. A peça que estavamos a criar (eu e a coreógrafa Irène Tassembédo) antes da pandemia do Covid-19, era integralmente inspirada neste questinamento sobre a construção do “género” feminino. Estas propostas coreográficas são, a meu ver, tanto mais interessantes se interpretadas à luz do facto da Companhia de Dança Contemporânea de Angola ser, há 10 anos, uma companhia masculina e inclusiva e de Angola ter vivido, após a independência, durante cerca de quatro décadas, num modelo cruel de ditadura disfarçada de democracia.
7 – O que considera estar ainda por ser contado no que diz respeito às mulheres e à dança na época da ditadura?
R. A época da ditadura, em Angola, estendeu-se até há bem pouco tempo. Digamos que vivemos duas ditaduras; a colonial e a pseudo-socialista, entretanto transformada em capitalismo desregrado e comandado por máfias cujos tentáculos se estenderam não exclusivamente às esferas política e económica mas, igualmente, às esferas sociais e culturais / artísticas. Temos de continuar a colocar pedras neste caminho de fazer da dança uma “arma” de denúncia e combate, na esperança de que outras pessoas saiam da letargia do entretenimento, ganhem coinsciencia e tenham a coragem de o trilhar.
Luanda, 28 de Junho de 2020
Ana Clara Guerra Marques
Fotos de Rui Tavares cortesia Ana Clara Guerra Marques
Ana Vidigal (Lisboa, 1960) licenciou-se em pintura pela Escola de Belas Artes de Lisboa em 1984. No seu trabalho, sobrepondo várias técnicas à pintura, Ana Vidigal resgata elementos de memória(s) pessoais, familiares, políticas e culturais. Daí emergem composições que se revelam poderosos constructos estéticos e críticos em torno de questões como o colonialismo, a condição da mulher na sociedade, entre tantos outros temas.
Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1985 e 1987, ganhou o Prémio Maluda em 1999 e o Prémio Amadeo de Souza Cardoso em 2003. A sua primeira exposição antológica,Menina Limpa, Menina Suja, realizou-se em 2010 no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (com curadoria de Isabel Carlos).
A sua exposição Amor Própriopode ser vista no Espaço 531 da Galeria Fernando Santos, no Porto, até 31 de Julho de 2020.
Esta entrevista foi realizada em Junho de 2019 no atelier da artista.
Bibliografia:
Isabel, C. (2010). Ana Vidigal-1980-2010: Menina Limpa Menina Suja. In F. C. G. CAM (Ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. CAM.
Rosengarthen, R., & Soares de Oliveira, L. (2003). Ana Vidigal. Lisboa: Assírio & Alvim.
Vidigal, A., & Rusengarthen, R. (2000). O Véu da Noiva. In T. M. B. Dias (Ed.). Funchal: Câmara do Funchal.
Nota biográfica: Raquel Afonso é licenciada em Antropologia pela NOVA FCSH (2013-2016), realizou estágio curricular no Museu Nacional de Etnologia com o projecto “Nos Bastidores do Museu: Migração do Arquivo de Imagem em Movimento Referente à Exposição Os Índios, Nós” (2016). Mestre em Antropologia pela NOVA FCSH (2016-2018). Participou no Seminário Memória, Cultura e Devir, sob orientação da Professora Doutora Paula Godinho. Em 2018, ingressou no Doutoramento em Estudos de Género pelo ISCSP/NOVA FCSH/FD-UNL. No mesmo ano, tornou-se Investigadora Integrada do IHC.
1 – Como surge o interesse pelo Estado Novo, em particular sobre a homossexualidade durante este período?
Bom, eu acho que sempre tive interesse por estas temáticas, nomeadamente porque durante a minha adolescência era difícil conseguir “apanhar” alguma coisa, o que sabia chegava-me através de filmes estrangeiros… Mas durante a licenciatura que fiz em Antropologia, as alunas e os alunos têm que elaborar vários trabalhos nas cadeiras que fazem e eu fui sempre aproveitando esses trabalhos para procurar saber mais sobre a comunidade LGBTI. Durante o mestrado (que também fiz em Antropologia) podíamos escolher uma cadeira de opção livre, e optei por realizar uma no Mestrado de Estudos sobre as Mulheres. Mais uma vez, tínhamos que elaborar um trabalho. E escolhi fazer sobre os direitos LGBTIQ+ em Portugal, numa perspetiva diacrónica. Foi aí que percebi que havia imensos estudos sobre a situação legal LGBTIQ+ no país, por exemplo, mas sobre tempos recentes. E que havia uma lacuna no pré-25 de abril, como se não existissem homossexuais na ditadura. Fiz alguma pesquisa e encontrei alguns trabalhos, mas poucos. Sobre o facto de ser crime, doença… Sobre algumas pessoas conhecidas. Mas sobre as desconhecidas nada. Como me apaixonei pelos Estudos sobre Memória (e isso devo-o à minha orientadora, Paula Godinho) decidi juntar os dois assuntos. A homossexualidade (e o lesbianismo) durante a ditadura portuguesa, através do resgate de memórias de pessoas que viveram esse período.
2 – Quais foram os obstáculos que encontraste ao fazer um trabalho de investigação como aquele ao qual te dedicas?
Uma das maiores batalhas que travei durante o período da minha investigação foi mesmo o processo de encontrar pessoas que quisessem falar sobre o assunto. O que eu queria era compreender como é que resistiam no quotidiano os homossexuais das classes mais baixas, porque a sua situação era pior (devido ao tratamento que era dado à homossexualidade, considerando a classe social de cada um). E essas pessoas não as encontrei. Claro que existem, muitas tiveram um casamento heterossexual, com filhos, agora netos… Muitos autorreprimiram-se. Adaptaram-se à norma. E, depois disso, acho muito difícil fazer um «coming out». Os entrevistados e entrevistadas que me falaram da sua vida são pessoas, digamos, de uma “classe média”, desconhecidas do público em geral e consegui-as através de uma gatekeeper, a pessoa que nos abre as portas do terreno. Uma amiga mais velha, que conhecia pessoas mais velhas e me foi indicando algumas. Depois, segui o sistema “bola de neve”, em que uma pessoa me dá o contacto de outra, e assim sucessivamente.
3 – E que conclusões inesperadas ou surpresas surgiram enquanto investigavas?
Olha, sinceramente, acho que uma das grandes surpresas que encontrei foi realmente o facto de ser muito difícil encontrar pessoas com quem falar e, mais ainda, encontrar pessoas que queiram falar. Eu achava que o facto de partilhar uma identidade não-normativa com elas e eles me iria “facilitar” o trabalho. Isso e, claro, garantir o anonimato. Mas, mesmo assim, as pessoas tendem a não querer falar. Outra das surpresas, mas boa, foi o facto de ter conseguido conhecer e entrevistar um número “interessante” de mulheres lésbicas, porque sabia que seria muito mais difícil encontrá-las.
4 – Como selecionaste as pessoas que entrevistaste para o teu trabalho? Foi difícil encontrar pessoas que quisessem contribuir com testemunhos?
Nota que conheci 17 pessoas, só 12 falaram comigo e só utilizo 10 histórias de vida no livro. Tive pessoas que não quiseram falar, assim que souberam a temática que estava a desenvolver, e tive pessoas, que já depois da entrevista realizada, não quiseram participar. Foi difícil. E às vezes desanimador. Mas as pessoas que se disponibilizaram, decidiram fazê-lo porque, e lembro-me bem, me “queriam ajudar”, queriam “dar o seu contributo”, visibilizar uma parte da história que estava na sombra. E essa “disponibilidade”, esse “apoio” que essas pessoas me deram também teve que ver com a relação de confiança que fui estabelecendo com elas nas conversas que tínhamos e numa base de partilha. Eles e elas tiveram que me conhecer primeiro, para eu os conhecer depois.
5 – Ao escolher quem entrevistar, tens em consideração o género de cada pessoa? A experiência das mulheres lésbicas é diferente da experiência dos homens homossexuais durante o Estado Novo?
Bom, eu acho que acabam por ser as pessoas a escolher-me, sabes? É um processo interessante, e lento. Porque não posso chegar ao pé de uma pessoa e ela contar-me a sua história em 10min. É preciso fazer a levedura necessária para criar uma relação de confiança. Dadas as dificuldades em encontrar pessoas que quisessem falar comigo, todas as que apareciam, eu conhecia e tentava entrevistar. Acabou por ser esse o processo, mas tentava sempre contrabalançar, de forma a manter uma “paridade de testemunhos”, digamos assim. Mas claro que tinha uma série de questões apenas direcionadas para homens e outras apenas direcionadas a mulheres. Tanto a opressão como as formas de resistência quotidianas são diferentes para homens e para mulheres. É uma experiência totalmente diferente porque os papéis sociais que se esperavam de uns e de outros eram igualmente diferentes.
6 – Parece haver uma ausência das mulheres em estudos sobre a homossexualidade, talvez pelo domínio da questão masculina nestes estudos ou pelo facto de a dupla invisibilidade da mulher lésbica lhe conferir uma certa facilidade em passar despercebida e ser ignorada. Como entendes a vivência das mulheres lésbicas durante o Estado Novo?
Como sabes, na altura, e no geral, os homens detinham o domínio do espaço público e as mulheres remetiam-se à esfera do privado, da casa. Para os homossexuais e lésbicas isto também acabava por acontecer. Os homens estavam mais na rua, frequentavam mais os locais de encontro para a prática sexual e isso também os fazia mais visíveis. A Polícia tinha conhecimento destes sítios e das práticas sexuais que lá aconteciam e vigiava esses locais, o que também fazia com que os homens fossem mais detidos. As mulheres não tinham urinóis para frequentar e, pelo menos aquelas com quem falei, estavam mais em casa, mesmo que com a sua namorada. Porque aí, ninguém desconfiaria, eram “apenas amigas”. Por isso, o que dizes faz muito sentido. As mulheres lésbicas tinham mais facilidade em passar despercebidas, até porque, eu acho, não eram muito levadas a sério… O lesbianismo fazia parte do reino do não-dito, se não se fala nele, não existe. Como é que duas mulheres poderiam ter uma relação sexual sem um falo? Penso que, por isso (ou seja, a inexistência de um homem e do seu “membro viril”) eram “desconsideradas”. Mas parece-me que acabaram por jogar com esse factor a seu favor.
7 – Planeias um estudo mais aprofundado sobre a questão das mulheres?
Olha, agora estou praticamente a meio do Doutoramento em Estudos de Género, no qual estou a trabalhar a homossexualidade, o lesbianismo e as formas de resistência nas ditaduras ibéricas do século XX, através de uma perspetiva comparativa. Pelo menos nos próximos dois anos, a minha investigação não irá passar exatamente, ou apenas e só, pela questão das mulheres lésbicas. Mas, quem sabe. É algo que me fascina, na verdade. E ainda há tanto por explorar…
8 – No teu trabalho, Homossexualidade e Resistência no Estado Novo, assim como noutros estudos, é afirmado que o fim da ditadura não significou uma libertação para as pessoas LGBTQI+. Podemos falar de um movimento de libertação em Portugal depois da ditadura?
De libertação sexual/da sexualidade? Eu acho que não. Pelo menos não nos anos imediatamente a seguir ao fim da ditadura. Assim que se deu o 25 de abril há dois momentos a assinalar. Um, no 1º de maio, onde surge no Porto um cartaz que diz “Liberdade para os Homossexuais” e outro, a 13 de maio, o Manifesto Liberdade para as Minorias Sexuais, que saiu no Diário de Lisboa. E mesmo em 75, através das entrevistas que fiz, é percetível que houve tentativas de as pessoas se começaram a organizar para discutir a temática, mas que não resultaram. Coletivo só em 1980, mas extingue-se em 1982. E só nesse ano é que a homossexualidade deixou de ser criminalizada em Portugal, imagina. Oito anos após o final da ditadura! Eu acho que o movimento de libertação nasce nos anos 90, mas que estes momentos que te falei, desde o fim do salazarismo, foram as sementes que ajudaram a fazer “rebentar” o movimento LGBTQI+ em Portugal.
9 – De que formas a ditadura influenciou e condicionou a vivência de pessoas LGBTQI+?
Eu acho que as ditaduras influenciam sempre a vida das pessoas que nelas vivem. Mas no que toca à repressão salazarista em relação às sexualidades dissidentes acho que condiciona de forma brutal. Dou-te um exemplo. Eu agora estou a fazer pesquisa de arquivo. Como eu refiro no livro, há uma série de leis que criminalizavam a homossexualidade e foram sendo alteradas/acrescentadas ao longo do tempo. Houve um decreto-lei (o 35042) que metia a PSP a vigiar os homossexuais. Então, os agentes faziam as suas rondas e se vissem alguém mais “amaneirado”/”afeminado”, essas pessoas eram detidas por suspeita de serem “invertidos” e de praticarem “atos contrários aos bons costumes”. Imaginas o choque disto na vida de uma pessoa? Chegavam a ir fazer exames ao Instituto de Medicina Legal, para se provar, ou não, que tinham sido “vítimas de sodomia passiva”. Era uma coisa brutal, digo-te. Para as mulheres, lá está, era menos “agressivo”, porque eram menos visíveis. No entanto, isso condiciona imenso. Ter que estar constantemente atento ou atenta, a olhar por cima do ombro, com medo.
10 – Que ecos encontras hoje dos anos da ditadura no que toca à experiência LGBTQI+? Que obstáculos ainda existem para a igualdade?
Vários investigadores e investigadoras, e incluo-me aqui, consideram que a homofobia durante a ditadura foi tão dura que causou um grande impacto que ainda hoje se reflete. Ainda hoje as pessoas sofrem discriminação. Sem dúvida nenhuma, acho que o maior eco que encontro é a mentalidade homofóbica. É sermos olhadas de lado, ouvir comentários na rua… Aquilo que eu vejo é que, apesar do muito que se conquistou em relação aos direitos LGBTI, a homofobia ainda está (demasiado) presente numa sociedade que se diz democrática. Não só a homofobia, como o machismo, o racismo, a xenofobia… São questões que têm que continuar a ser trabalhadas, trazidas para a praça pública, a gerar discussão… Originar uma educação diferente, mais inclusiva. Isso é muito importante para ajudar uma nova geração a crescer com mais igualdade e menos discriminação.
11 – Como definirias a figura da mulher lésbica durante o Estado Novo?
Com exceções, que existiram, eu acho que a mulher lésbica durante o Estado Novo era uma mulher que se sentia desencaixada dos papéis sociais que lhe eram atribuídos. Eram mulheres que arranjavam formas de resistir à heteronormatividade e ao patriarcado, mesmo que essas formas fossem veladas. Eram mulheres que se queriam encontrar, perceber o que sentiam, viver a vida o melhor possível.
12 – Como definirias a figura da mulher lésbica agora?
Hoje, acho que as mulheres lésbicas (as mais jovens, pelo menos) reivindicam o seu espaço na vida pública. Lutam pela sua visibilidade e eu considero que a visibilidade é muito importante porque as mulheres lésbicas não têm que estar na sombra de ninguém, seja essa sombra feita por homens ou por mulheres heterossexuais. Nós também lutámos, também estivemos lá. E estamos.
13 – E o movimento feminista de então, e o de agora, em relação às mulheres LGBTQI+?
Olha, eu acho, muito sinceramente, que nos primórdios do movimento feminista se tentou, de certa forma, “esconder”, ou mesmo “apagar”, a existência das mulheres lésbicas das suas fileiras, porque não era bom para a imagem do movimento. Acho que hoje ainda continuamos ofuscadas pelo (pelo menos) duplo estigma, de sermos mulheres e de sermos mulheres lésbicas. Mas sinto que estamos a tentar alterar isso, porque as lésbicas também se querem fazer ouvir e fazem por isso. As lésbicas e não só. Acho que o movimento feminista atual está, cada vez mais, a lutar por um feminismo intersecional, que dê conta das diferentes experiências das mulheres, sejam elas negras, lésbicas, cis, brancas, trans. E isso é muito importante, porque um movimento que luta pela igualdade também tem que se pautar pela inclusão e não-discriminação.
Bibliografia
Afonso, Raquel. Homossexualidade e Resistência no Estado Novo. Ourém: Luz Elétrica, 2019.
Emília Nadal, artista nascida em Lisboa em 1938, notabilizou-se como uma das artistas mais destacadas da sua geração. Licenciou-se em Pintura na Escola de Belas Artes de Lisboa em 1960, depois de ter estudado na Escola de Artes Decorativas António Arroio. Em 1974, com Maria Gabriel e Ilda Reis, fez também formação na Cooperativa Gravura. Tem vindo a trabalhar não só a pintura e gravura, mas também o desenho e a cenografia. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian em 1977, altura em que desenvolveu obras como Embalagens para Conteúdos Imaginários e Liofilizados (1976-1979), Skop (1979) ou Mulher-Ideal (1977), nos quais funde uma linguagem Pop com uma problematização ideológica mais vasta no contexto do pós-revolução.
No seu vasto percurso destaca-se ainda a organização da exposição Artistas Portuguesas, que decorreu na Sociedade de Belas Artes de Lisboa em 1977, verdadeiro evento multidisciplinar dedicado à criação no feminino, com curadoria conjunta com a artista Clara Menéres e a crítica de arte Sílvia Chicó.
Em 1979 participa no programa Obrigatório Não Ver, de Ana Hatherly, que foi transmitido na RTP2 entre 1978 e 1979 com a performance Episódios.
Emília Nadal é actualmente presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa.
No dia 29 de Maio de 2020, conversámos com a artista no seu atelier do Estoril sobre a sua vida e obra.
Bibliografia:
Azevedo, F. d. (1978). Emília Nadal. In G. e. G. Zen (Ed.). Lisboa e Porto: Galera 111 e Galeria Zen.
Castéras, C. d. (1979). Feminie dialogue. Arquivo de Emília Nadal, Paris.
Chicó, S. (1977). Artistas Portuguesas. In SNBA (Ed.). Lisboa: SNBA.
Chicó, S., & Nadal, E. (1986). Sonho e vida em gestos de mulher. In I. F. Português (Ed.). Lisboa: MDM.
França, J.-A. (1977a). Emília Nadal. «Algumas propostas para a embalagem de conteúdos naturais e liofilizados». In M. N. S. d. R. C. d. A. Contemporânea (Ed.). Porto: MNSR/CAC.
França, J.-A. (1977b). Warhol, Nadal e Cª. Diário de Lisboa.
Gastão, A. M., Pontes Leça, C. d., Domingues, F. B., França, J.-A., Blanco, J., Braga da Cruz, M., Centeno, Y. (2011). Emília Nadal. Pintura de Memórias. Lamego: Edições Cão Menor
Hatherly, A. (2009). Obrigatório não Ver. Lisboa: Quimera.
Oliveira, M. (2016). Portuguese Women Artists at the National Society of Fine Arts (1977): why was this not a feminist exhibition? In A. Jabukowska & K. Deepwell (Eds.), All-Women Art Spaces in Europe in the long 1970s. Liverpool University Press.
Raquel Henriques da Silva, A. R., Ana Filipa Candeias. (2007). 50 Years of Portuguese Art. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Emília Nadal ao lado da obra Skop
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TEA TIME Slogan´s Performance – Eating Slogan´s cookies Galeria Espaço Branco – Círculo de Artes Plásticas de Coimbra Inauguração da Exposição “Projectos e Objectos” 1981 – Calling for tea
TEA TIME Slogan´s Performance – Eating Slogan´s cookies Galeria Espaço Branco – Círculo de Artes Plásticas de Coimbra Inauguração da Exposição “Projectos e Objectos” 1981 – Eating Slogan´s cookies
Entrevista de Joana Passos e Márcia Oliveira a Diana Andringa
1 – A Diana Andringa começa a trabalhar como jornalista ainda nos anos 60, após abandonar o curso de medicina e no seguimento do 1º Curso de Jornalismo criado pelo Sindicato dos Jornalistas…
Sempre gostei de escrever. Lia muito, a gramática era uma coisa que me aborrecia um bocado e as redações eram a minha arma para ter boas notas. Lembro-me de ter escrito, creio que aos 9 anos, o meu 1º e único romance – teria aí umas 4 páginas – sobre um soldado chinês na luta contra o Japão. E de um conto sobre um avião, que a minha irmã mostrou a um amigo – esse sim, um grande escritor – que teve a gentileza de o achar muito bem escrito. Depois passei à poesia e – já não sei bem como, se fui eu que mandei, se foi alguém da família – alguns poemas foram publicados no Juvenil do Diário de Lisboa. Foi-me muito útil porque, quando estava distraída nas aulas de Matemática – o que era frequente – o professor perguntava “Andringa, estás a escrever um poema?” e passava a outra vítima… Mas foi já na Faculdade de Medicina – sim, nem escritora nem médica, a minha vida é uma sucessão de promessas falhadas – que, em reação à prisão pela PIDE, a 21 de Janeiro de 1965, de cerca de 50 estudantes, entre os quais alguns colegas e amigos, achei que era preciso escrever um jornal a denunciar o facto. Com a ajuda de um colega um pouco mais velho, e que já estivera preso, o Omar Karim Ahmad, saiu o “Boletim” da Comissão pró-Associação dos Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Uma excitação, entrar numa tipografia, aprender palavras novas – uma cor, “magenta” – ou um significado diferente para uma palavra conhecida, “morder”, quando uma “mancha” contamina outra, de que não devia aproximar-se – e uma classe profissional solidária, os tipógrafos. Na Imprensa estudantil federativa destacava-se outro boletim, “Unidade Estudantil”, de que era o principal rosto o Ruben Tristão de Carvalho. Criámos a camaradagem e amizade próprias da época… A atividade associativa desviou-me um pouco dos estudos, o chumbo a Anatomia que se seguiu (e continuo a achar injusto, porque foi na prática, com uma única pergunta, por um assistente que não gostava de associativos…) desmoralizou-me e as inundações de 67, com o trabalho em outro boletim federativo, “Solidariedade Estudantil”, decidiu-me pelo jornalismo. Nessa altura já colaborava por vezes no Diário de Lisboa e no Diário Popular, e o Ruben convidou-me para a redação da Vida Mundial. Tive de entrar como tradutora, porque o diretor de então achava que as mulheres não tinham capacidade para serem jornalistas. Claro que já trabalhava como jornalista e quando mudou o diretor pude passar a sê-lo oficialmente. Foi uma experiência fantástica, que gostava que todos os jovens jornalistas pudessem ter. Basta dizer que, quando quiseram mudar a orientação e a chefia da revista, houve uma demissão coletiva – dos 14 jornalistas saíram 12 e a maioria dos colaboradores. E depois organizámos uma lista com os jornalistas desempregados, por ordem decrescente de necessidade – e, quando havia uma oferta de emprego, avisávamos os que estavam no topo da lista. Foi assim que, sendo a última da lista – tinha o apoio dos meus pais – fui parar a uma agência de publicidade como copy-writer, um trabalho que mais ninguém quis. Foi aliás lá que a PIDE me foi prender.
2 – Foi presa pela PIDE no âmbito da sua actividade subversiva contra o regime. Como se operavam essas suas actividades?
Gostava imenso de vos poder dizer que eram coisas grandiosas, mas não, eram coisas minúsculas que só a pequenez do regime podia permitir considerar perigosas: enviar para Angola materiais necessários como medicamentos, material de escrita (folhas de stencil), fotografias e textos, que depois de chegarem a Comité Regional de Luanda eram passados para a 1ª Região Militar do MPLA, levar roupa quente a um angolano preso no Forte de Peniche, ajudar a fazer chegar informações sobre as prisões para o estrangeiro, algum correio… Nada de especialmente relevante.
3 – Em que circunstâncias decorreu a sua prisão pela PIDE?
Com toda a legalidade: como quando a brigada que me ia prender chegou a minha casa já eu tinha saído para o emprego (aliás, vi passar o carro com os agentes, mas como me achava tão pouco importante e não estava ligada a nenhuma estrutura clandestina pensei que, caso me prendessem, não podia causar grandes estragos e seria certamente por pouco tempo), por isso foram prender-me na Agência, com mandado de captura. E, como tinham prendido uma amiga minha, que morava perto, e a mãe dela quando foi avisar-me a casa viu lá a PIDE e alertou outra amiga, que me telefonou, tive tempo de passar uma procuração a um advogado, pedir a uma colega que depois fosse reconhecer a assinatura e a entregasse à minha mãe, e de avisar os meus pais. Saliento a solidariedade dos colegas. Um deles, familiar do diretor da PIDE, disse-me mesmo que, se tivesse papéis para esconder, os podia pôr na gaveta dele…
4 – Havia uma forma distinta de ser uma mulher presa política, ligada aos movimentos independentistas?
Uma presa é uma presa, é uma presa…. Teoricamente haveria pelo menos a vantagem de não estar diretamente metida nos conflitos partidários que se viviam então nas cadeias da PIDE. Mesmo assim, ainda houve uma ocasião em que uma presa do PCP pediu para mudar de sala porque não queria estar com uma pessoa da FAP-Frente de Acção Popular (Acusação que, note-se, a PIDE me tinha feito no início e depois retirado…)
5 – Havia uma consciência ideológica específica das mulheres no seio da luta contra o regime?
Penso que nessa altura predominava a ideia de que a prioridade era derrubar a ditadura. Mas sim, já tínhamos consciência, já tínhamos lido a Simone de Beauvoir, o livro sobre a Djamilia Boupacha (Beauvoir e Gisèle Halimi), e já nos confrontávamos com o machismo existente também em gente de esquerda. Mas só se tornou explícita depois do livro dito das 3 Marias (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa), “Novas Cartas Portuguesas”.
6 – Que tipo de trabalhos faz a Diana Andringa como jornalista antes do 25 de Abril de 74? Como descreveria o antes e o depois no seu trabalho?
Trabalhei quase sempre – Vida Mundial, Diário de Lisboa, RTP – na Secção Internacional. Na Vida Mundial fiz alguns trabalhos de Nacional, que a Censura tinha especial gosto em cortar… Lembro-me de uma reportagem numa mina fechada pelo patrão, que os mineiros mantinham em funcionamento – que foi cortada totalmente e de que não tenho sequer uma prova tipográfica, mas foi um dos trabalhos que mais me marcou. De outro sobre a crise no Seminário dos Olivais, em que a Censura cortou excertos das Encíclicas, respondendo-me, quando protestei: “Bem sabemos que está a citar fora de contexto!” Os meus textos eram tão cortados que o Guilherme Pereira da Rosa me propôs ficar em casa com salário e não escrever, porque com tanto corte “gastava demasiado chumbo” … No DL fui criticada pelo Chefe de Redação porque uma vez que fiquei a substituir a Antónia de Sousa, na Página da Mulher, pedi à Regina Louro uma reportagem sobre as mulheres que trabalhavam nas casas de banho do Metropolitano. Ela fez uma reportagem notável, mas o chefe explicou-me que não podia pôr um artigo daqueles numa página em que deveria entrar a publicidade a um perfume, salvo erro, Givenchy. Ao que eu respondi que, pelo contrário, era perfeito para combater o cheiro da casa de banho. Infelizmente, ele não achou um bom argumento…
Acabei por ficar desempregada, vivi uns tempos em França, voltei e só consegui emprego na publicidade – onde estava a 25 de Abril.
A Natália Correia, que foi dirigir a Vida Mundial, teve a gentileza de me convidar a regressar à revista – e mostrou a diferença entre Democracia e Ditadura um dia em que um artigo que escrevi sobre o general Spínola não lhe agradou. Quando me disse que não concordava com o que escrevera, respondi-lhe “Então corte!” A Natália ergueu a voz estentórea para me dizer que tinha sido censurada, lutara contra a Censura, nunca censuraria ninguém. E fez uma coisa lindíssima, que nunca esquecerei: publicou o meu artigo, criticando-o no seu editorial. Depois a Vida Mundial, como todas as publicações da Sociedade Nacional de Tipografia foram fechadas “por seis meses, para reestruturação” e nunca mais reabriram. Em 1978 o Fernando Balsinha convidou-me para a RTP. E aí também havia alguns problemas: por exemplo, um dia que escrevi que trabalhadores latino-americanos “exigiam” melhores condições de trabalho, o apresentador do Telejornal, que era também chefe de redação, cortou a palavra, “porque os trabalhadores não exigem, pedem”. Uma imagem de arquivo em que Adriano Moreira aparecia a aplaudir vigorosamente Salazar, que usara num programa, foi cortada. Um programa sobre Refugiados levou-me a uma prateleira, meses sem trabalhar… A série Geração de 60 levou muito tempo a ir para o ar…
7 – Em 78 entra na RTP, onde depois enveredou pela realização de documentários. Pode contar-nos como foi este seu percurso até chegar à realização? Havia um percurso típico que as mulheres tinham que percorrer até conseguirem ser realizadoras?
Entrei na RTP como jornalista da Secção Internacional do Telejornal. Estive depois, com o mesmo trabalho, no Jornal 2. Quando fechou, fui colocada na Grande Reportagem, onde tive a possibilidade de fazer o trabalho sobre refugiados que referi e que foi, para mim, uma enorme aprendizagem, pessoal e profissional. Depois de emprateleirada, voltei ao Telejornal. Uma notícia sobre um bombardeamento norte-americano à Síria desencadeou a ira do meu chefe na Secção Internacional e fiquei proibida de fazer notícias sobre esses temas. Pedi a mudança para a Direção de Programas. Entretanto tive a sorte de ter uma bolsa do British Council para fazer um pequeno curso de Documentário na Visnews, em Londres. Seguiu-se a Geração de 60, com muitos episódios desagradáveis, nova prateleira e, finalmente, o Departamento de Artes e Documentais, onde tive a possibilidade de escrever o guião de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul injustiçado, realizado pela Teresa Olga (com quem aprendi muito do pouco que sei sobre realização) e produzido por ela e pela Fátima Cavaco. Correu muito bem e, a partir daí, continuei a fazer documentários, primeiro realizados pela Teresa ou outras realizadoras, e depois permitindo-me realizá-los. Mas não me considero uma realizadora: sou uma jornalista que faz documentários.
8 – Diria que o Centro de Formação da RTP teve um papel preponderante na entrada de mulheres na carreira de realização?
Embora sublinhando a importância do Centro de Formação, não tenho dados que me permitam dizê-lo.
9 – O foco sobre a memória e impacte do regime salazarista e do colonialismo português em África é notório em trabalhos como “Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”. Vê estes seus filmes como um apelo à memória daquilo que foi o colonialismo português ou pelo contrário trata-se de ‘desenterrar’ uma memória que ainda não existe?
Fui contra o salazarismo e o colonialismo e acho que é preciso mostrar a realidade do que foi viver sob ambos. Sou contra a amnésia histórica e faço parte dos que acreditam que sem memória não há futuro. A existência de Censura privou gerações de conhecerem a realidade – e estendeu a sua sombra sobre o futuro, fazendo com que nos faltem imagens, dados, testemunhos. Acho que é nossa obrigação mostrar a realidade que nos era escondida.
10 – A sua experiência e vida enquanto mulher a viver sob a repressão no Estado Novo e elemento activo da luta anti-colonial influência de algum modo a visão que espelha nestes filmes?
Naturalmente.
11 –Recentemente (2019) estreou o seu documentário “Guiné-Bissau: da Memória ao Futuro”, fazendo um balanço das quase cinco décadas de independência. Como apresenta ao seu público o caminho percorrido pela Guiné?
Como o de uma luta exemplar, em que o assassinato de Amílcar Cabral introduziu uma fortíssima perturbação que o povo guineense paga até hoje. Como dizem alguns “mais-velhos” angolanos meus amigos, “Não foi isto que nós combinámos.” Não foi certamente a realidade que se vive hoje que a Geração de Cabral sonhou para a Guiné. Mas o sistema internacional é muito duro para com os países saídos do colonialismo e a comunidade internacional, com as suas receitas “pronto-a-vestir”, prejudicou mais do que ajudou à construção da Guiné.
Mas apresento também jovens e menos jovens em quem o sonho não morreu e que continuam a bater-se pela construção da Pátria que sonharam. Sem perderem o espírito crítico, como bem mostram os filmes de Flora Gomes, por exemplo.
12 – Reportando-se ao processo na vizinha Angola, poderia comentar o percurso particular de Mário Pinto de Andrade, membro fundador do MPLA, que acaba por ser ministro da cultura na Guiné?
Distinguiria duas coisas: 1. a ligação, pessoal e política, entre os fundadores dos movimentos de libertação das diferentes colónias africanas portuguesas, a noção de que a luta contra o colonialismo português era comum, 2. as divisões internas no MPLA que levam a que Mário Pinto de Andrade, 1º Presidente do Movimento, se veja banido deste e de Angola pela sua oposição à presidência de Agostinho Neto e criação da facção “Revolta Activa”. Mário sempre fora muito próximo de Amílcar Cabral e do PAIGC, era visto pelos que o conheciam como “um intelectual emprestado à Revolução” e, enquanto o poder que se afirma em Angola o afasta, a Guiné independente convida-o para o lugar que naturalmente poderia desempenhar de modo exemplar. Uma atitude lamentável do MPLA, uma atitude inteligente, natural e solidária do PAIGC. Mário Pinto de Andrade tinha autoridade moral e intelectual para pôr em causa opções da direcção do MPLA e esta fez o que todos os poderes gostam de fazer aos críticos: afastou-o e apagou mesmo o seu lugar na História do Movimento, só recentemente voltando a admitir que ele fora o primeiro presidente do Movimento e fora ele a passar a presidência a Agostinho Neto.
13 –Enquanto realizadora, como vê o cinema africano feito por autores dos países de língua portuguesa? Têm reconhecimento nos festivais africanos? E concordaria que, pela quantidade de realizadores e obras, o cinema Moçambicano se destaca?
Não conheço suficientemente a produção dos países lusófonos, nem os festivais africanos. Do que sei, são bem acolhidos. Pelos critérios que refere, o cinema moçambicano destaca-se – e há que lembrar a importância que, logo após a independência, foi dada ao cinema por Samora Machel e que a Margarida Cardoso retratou no “Kuxa Kanema”. Mas realço também o milagre guineense, esse pequeno país que produz grandes realizadores – porque Amílcar Cabral os induziu a tornarem-se cineastas, para que fossem os guineenses a filmar a sua História.
14 –Visto que Flora Gomes é o mais destacado cineasta da Guiné, considera-o uma referência para o seu trabalho enquanto realizadora? Ou considera que cinema documentário e ficção não se cruzam?
A primeira vez que vi um filme de Fora Gomes, o “Mortu Nega”, tinha já a ideia de fazer um documentário sobre a luta de libertação/guerra colonial com um realizador de uma das antigas colónias. Quando saí do cinema, comecei a procurar o contacto do Flora e fui ter com ele para lhe propor fazermos esse filme, que veio a ser “As duas faces da guerra”. Falaria mais de fraternidade e de camaradagem que de referência – e com isto não pretendo diminuir a importância do Flora Gomes como cineasta nem a qualidade do seu trabalho, antes dizer que penso que temos referências comuns, a luta de libertação, Amílcar Cabral, a ideia do cinema como arma contra o esquecimento do valor da luta pela dignidade humana.
15 – Neste momento, o norte do Moçambique (Cabo Delgado) está a ser “ocupado” por forças ligadas à expansão do islamismo. Como é que funciona, dentro da Guiné-Bissau, a forte presença do mundo islâmico a par de outras comunidades?
Nas últimas viagens que fiz à Guiné fui notando mais sinais dessa presença, bem como de divisões étnicas que a luta de libertação parecia ter ultrapassado. Em alguns casos, por importação do estrangeiro – ou, talvez melhor, por exportação feita por outros países. Mas não conheço o suficiente sobre o tema para me permitir mais do que esta constatação.
16 –Para além de Odete Semedo, que outros nomes femininos destacaria na atual cultura e na produção artística da Guiné-Bissau?
Destacaria uma actriz imensa do “Mortu Nega”, Bia Gomes. Que me contou, quando a entrevistei, que quando o filme foi visto na Guiné, as pessoas não fixaram o nome Bia Gomes: ela tornou-se Diminga, a personagem que interpreta. Contou-me que passava na rua e a chamavam, “Diminga, Diminga!” A dignidade que deu àquela mulher, a todas as mulheres que viveram a luta, foi espantosa.
17 – Ondjaki, Ana Paula Tavares, Agualusa, Luandino vivem fora de Angola. A Diana vive em Portugal. Odete Semedo já viveu no Brasil. Saramago vivia em Lanzarote. Porque será que tantos escritores do mundo com língua portuguesa, da segunda metade do século XX, vivem no exílio?
Nasci em Angola, costumo dizer que a minha pátria é o Dundo, na Lunda Norte – mas vim de Angola com 11 anos, a minha educação foi feita em Portugal e, embora gostasse de ver reconhecida a minha nacionalidade angolana, não me considero exilada, antes uma pessoa em que coexistem várias nacionalidades (ainda há o avô holandês, a avó espanhola, o amor pela Guiné ou por Timor-Leste, por exemplo.) Não conheço o caso concreto de cada um dos que cita. Mas talvez tenha alguma coisa a ver com um título belíssimo do Daniel Filipe, “Pátria, Lugar de Exílio”.
18 – Foi jornalista durante o Estado Novo, várias vezes foi perseguida, e nunca desistiu da missão de informar. Agora, que pode fazer o seu trabalho com liberdade de expressão, acha que os portugueses estão disponíveis para ouvir, ou as memórias da guerra colonial ainda são incómodas?
São muitas vezes incómodas, mas muitos querem ouvi-las. Quando fiz a “Geração de 60”, em que havia um episódio específico sobre a guerra colonial, disse que gostaria que ninguém visse o episódio todo, porque preferia que começassem a falar sobre a guerra: “Pai, tiveste medo?” “Pai, tiveste de matar?” O episódio passou, houve gente que telefonou para a RTP a pedir que me despedissem, outros a ameaçar-me…E um dia, num centro comercial, houve um senhor mais ou menos da minha idade que veio ter comigo e perguntou: “É a Diana Andringa?” Disse-lhe que sim e pensei que provavelmente me iria agredir. E ele disse: “Só para lhe dizer Obrigado! Pela primeira vez consegui falar com a minha família, a minha mulher, os meus filhos, sobre o que foi fazer a guerra.” Acho que foi um dos maiores elogios que recebi na vida. E ver “As duas faces da guerra” numa sessão em que havia antigos combatentes do PAIGC e do Exército português e ouvi-los a trocar opiniões e memórias no final também foi reconfortante. Afinal, é para isso que servem os documentários…
19 – A representação da mulher no cinema africano ainda é muito conservadora, dentro de tradicionais padrões patriarcais. Alguma vez ponderou abordar este tema nos seus documentários?
Mais uma vez, não conheço suficientemente bem o cinema africano para poder concordar ou discordar dessa afirmação. Ao pensar, por exemplo, no “Mortu Nega” ou no “Nha Fala”, não tenho essa ideia. Mas uma vez, na Guiné, numa sessão de “As duas Faces da Guerra”, fui invectivada por uma senhora que me disse: “Porque é que não me entrevistaste? Eu estava ali, nas imagens de arquivo, era telegrafista!” Optei por uma saída fácil: “Ralha com o Flora, ele é que indicou as personagens guineenses!” Mas fiquei a pensar que, no fundo, também eu não tivera sensibilidade suficiente para o equilíbrio de género. E depois lembrei-me de outra experiência, em Timor, onde os homens admitiam ter feito actos heroicos, mas as mulheres, por vezes mais heroicas, diziam sempre “eu não fiz nada!”. E era preciso insistir muito para conseguir que me contassem o que tinham feito. Uma espécie de modéstia que se insere, também, nos padrões patriarcais. Mas é algo sobre que consigo pensar, mas sobre que não sei se saberia fazer um documentário. E não sei fazer ficção…
Diana Andringa respondeu a esta entrevista através de e-mail, em Abril de 2020.
Jornalista com uma longa experiência, Diana Andringa começou por trabalhar na imprensa, estreando-se em 1967 no Diário Popular. Colaborou, entre outros, com o Diário de Lisboa, a revista Vida Mundial, o Diário de Notícias e Público. Passou para o jornalismo televisivo em 1978. Embora não seja esse o foco desta entrevista, gostaríamos de destacar uma longa série de documentários sobre escritores, realizada para a RTP. Fez importantes documentários sobre a guerra colonial e tem uma longa história como resistente política, tendo sido presa política durante o Estado Novo. A sua investigação cruza-se com o foco do projeto Womanart a vários níveis, mas sublinhamos o seu atual projeto de investigação, no CES – Universidade de Coimbra, sobre Memória da Tortura em Portugal e Colónias(1926-1974).
Dos vários prémios e honras que recebeu, são de referir, entre 1994 e 1996, 3 prémios atribuídos pelo Clube de Imprensa e pelo Clube de Jornalistas, o que representa o reconhecimento dos seus pares pelas reportagens televisivas que elaborou. Em 1997 recebeu a Ordem do Infante D. Henrique (grau de Comendador) e em 2006 recebeu a Ordem da Liberdade.
Filmes e reportagens especiais:
Operação Angola: Fugir para Lutar (2015)
Tarrafal – Memórias do Campo da Morte Lenta (2011)
Dundo, memória colonial (2009)
Guiné-Bissau: As duas faces da guerra (com Flora Gomes, 2007)
Timor-Leste: O sonho do Crocodilo(2002)
José Rodrigues Miguéis: um homem do povo na história da República (1998)
António Ramos Rosa – estou vivo e escrevo sol (1997)
Jorge de Sena – uma fiel dedicação à honra de estar vivo (1997)
Vergílio Ferreira: retrato à minuta (1996)
Rómulo de Carvalho e o Seu Amigo António Gedeão (1996)
Aristides de Sousa Mendes, o cônsul injustiçado (1983)
Goa, 20 anos depois (1981)
Livros:
Andringa, Diana (orgs.) (2017), Joaquim Pinto de Andrade: uma quase autobiografia. Porto: Afrontamento
Andringa, Diana (2014). Funcionários da Verdade, Profissionalismo e Responsabilidade Social dos Jornalistas do Serviço Público de Televisão. Lisboa: Tinta da China
Andringa, Diana (1996), “Demasiado!”: (uma viagem ao mundo dos refugiados. Lisboa: Teorema
Caldeira, Alfredo; Andringa, Diana (orgs.) (1994). Em defesa de Aquilino Ribeiro. Lisboa: Terramar
Créditos da imagem: Guardando memórias: nas mãos de um antigo preso do Tarrafal, o osso em que gravou o desenho do campo (cortesia de Diana Andringa).
Documentaristas, pesquisadoras e parceiras na produtora DocumentART Filmes, Krishna Tavares e Danielle Gaspar são as realizadoras do documentário “Atrás de portas fechadas” (2014), filme que faz parte da programação do II Ciclo de Cinema WOMANART.
Mónica de Miranda é uma artista portuguesa de origem angolana que vive e trabalha entre Lisboa e Luanda. Artista e investigadora, o seu trabalho é baseado em temas de arqueologia urbana e geografias pessoais. Trabalha de forma interdisciplinar com desenho, instalação, fotografia, filme, vídeo e som, nas suas formas expandidas e nas fronteiras entre a ficção e o documentário. Formada em Artes Visuais e Escultura pela Camberwell College of Arts (Londres) e doutorada em Estudos Artísticos pela Middlesex University (Londres).
Em 2019, foi nomeada para o prémio Novos artistas no Maat e em 2016 para o Prémio Novo Banco Photo, expondo como uma das finalistas no Museu Coleção Berardo. Entre as suas exposições destacam-se a participação nas exposições: Arquictectura e Fabricação, no MAAT em Lisboa (2019); Panorama, Banco Económico (Luanda,2019); Doublethink: Doublevision, Pera Museum (Istambul,2017); Daqui Pra Frente, Caixa Cultural (Rio de Janeiro e Brasília, 2017-2018); Bienal de Fotografia Vila Franca de Xira (2017); Dakar Bienal no Senegal (2016); Bienal de Casablanca (2016), Addis Foto Fest (2016); Encontros Fotográficos de Bamako (2015); MNAC (2015); 14ª Bienal de Arquitectura de Veneza (2014); Bienal São Tomé e Principe (2013); Estado Do Mundo, Fundação Calouste Gulbenkian (2008). É uma das fundadoras do projeto Hangar (Centro de residências artísticas, Lisboa, 2014).
A sua obra está representada em várias colecções públicas e privadas, entre as quais: Calouste Gulbenkian, MNAC, MAAT, FAS e o Arquivo Municipal de Lisboa.
Mónica de Miranda, Untitled from the series city-scapes, 2017 Inkjet print on cotton paper
A vida de Arlete Silva está intimamente ligada à importância que ainda hoje a Galeria 111 ocupa no panorama artístico e cultural português. Isto não só porque é atualmente co-proprietária (juntamente com o filho, Rui Brito, e a filha, Inês Brito), desta galeria lisboeta, como também viúva do seu fundador, o livreiro, galerista e colecionador de arte Manuel de Brito, tendo-o acompanhado, desde o primeiro momento, nessa aventura que foi criar uma galeria dedicada à arte contemporânea nos idos anos 60 do século XX (a galeria foi fundada em 1964, no mesmo espaço em que Manuel de Brito tinha aberto a sua livraria, o número 111 no Campo Grande). A vida de Arlete Silva e da galeria que ajudou a criar estão assim marcadas pelas memórias desse período negro da existência portuguesa, bem como pelas diversas convulsões que o país sofreu nos últimos quarenta anos, desde a conquista da liberdade em Abril de 1974 até à mais recente recessão económica, passando pelo ‘boom’ proporcionado pela abertura ao mercado único europeu, nos finais da década de 80.
Centrando-se no início da atividade da Galeria 111, que, em clara contracorrente aos valores promovidos pelo regime ditatorial, procurou contrariar o marasmo e o academicismo dominantes na arte portuguesa, propiciar uma maior abertura e cosmopolitismo, pelo menos na capital, e ainda apoiar e promover uma nova geração de artistas portugueses, quer os que resistiam no país, quer os que procuravam, lá fora, novos horizontes, a entrevista que aqui se apresenta teve lugar num dia quente de verão (Julho de 2019), e nos escritórios da Galeria (que já nos anos 70 se tinha mudado do número 111 para o 113, na mesma rua, mas mantendo, ainda assim, a designação). Nela se explora também o papel que Arlete Silva e Manuel de Brito tiveram no apoio a uma série de artistas portuguesas, nomes bem conhecidos da arte contemporânea, como Paula Rego, Lourdes Castro e Menez.
Nesta entrevista, concedida em Vila Nova de Cerveira, na Porta Treze, em novembro de 2019, Luandino Vieira fala sobre a adaptação dos seus textos pela cineasta Sarah Maldoror. Discute, igualmente, o poder repressivo da censura do Estado Novo e as estratégias usadas para a contornar, como a livre e clandestina circulação de textos, mesmo se em versões sem a chancela do autor. Recorda-se também a atividade da Casa dos Estudantes do Império, a função das ideias da “Négritude” na consciencialização política da geração de 50, e o contributo das mulheres para a consolidação da literatura angolana.
JP: Queria pedir-te para nos falares um pouco da forma como o teu livro, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961), se tornou um filme pela mão de Sarah Maldoror. Como é que foi o processo? Tu estavas preso quando escreveste o livro… Como é que o manuscrito chega até Sarah Maldoror?
Luandino Vieira: … Estou a tentar organizar a resposta de maneira a ser curta. O livro foi escrito ainda em liberdade. Foi terminado no dia 10 de Novembro de 1961. Foi começado em Luanda, mas foi terminado em Lisboa, onde eu estava nessa altura. Fui preso no dia 20 de Novembro… e o manuscrito ficou com a minha mulher, que o dactilografou, e enviou, não sei para quem. Só sei que muitos anos mais tarde, isto é, em 68, talvez 69, o manuscrito chegou às mãos de Mário Pinto de Andrade. Mário Pinto de Andrade fez publicar a versão em português, com o título a Vida Verdadeira de Domingos Xavier, e o autor era Mundele Kwanza. Eu estava preso, e eles não publicaram com o meu nome para não haver mais confusões como a confusão que houve por causa do Luuanda. Entretanto, o Mário trabalhava na Présence Africaine, e ele e uma senhora francesa fizeram a tradução para francês. O livro foi publicado pela Présence Africaine por esta altura, 68, 69 (se estivesse em casa iria buscar um exemplar e via, assim não sei). E o Mário vivia com a Sarah, Sarah Maldoror, uma jovem cineasta de… Martinica?
JP- Guadalupe…
Luandino Vieira: Guadalupe! Confundo sempre! E a Sarah, vivendo com o Mário, fazia parte daquele grande grupo de africanos que havia por Paris, que estavam todos incluídos no movimento anti-colonial, e que lutavam pelas independências nos seus países. Independências, auto-determinação, chamemos-lhe o que chamemos, queriam-se livrar do sistema colonial, que já era um sistema absolutamente obsoleto naquela altura.
JP – E depois? A Sarah viu o livro…
Luandino Vieira: A Sarah fez primeiro uma média metragem, ou, uma curta metragem, a preto e branco, com o apoio do FNL, da Argélia. Não sei se o fez em Argel. É o “Monagambé”, baseado num conto, “O Fato Completo de Lucas Matesso”, que está no meu livro Vidas Novas (1968), que também circulava nessa altura em Paris, numa edição mimeografada, de circulação clandestina. Depois dessa experiência, começaram a pensar fazer o Sambizanga.
JP – Mas onde é que ela foi buscar apoio financeiro?
Luandino Vieira: O apoio financeiro, logístico-financeiro, foi da França e do Congo. Mais tarde, depois do 25 de abril, houve sempre muitos problemas para fazer a distribuição do filme – e a exibição – porque não tinham os direitos. Os direitos eram de um produtor. Lembro-me que a certa altura um distribuidor português, o Cunha Teles, me disse, “- é difícil!”, porque o (produtor) francês achou que tinha ali uma mina de diamantes…
Mas o apoio logístico fundamental foi da República do Congo – Brazzaville, onde o MPLA tinha uma delegação. Era ali o sítio onde alguns militantes e guerrilheiros passavam, para descansar e curar doenças ou feridas, o que houvesse. Era normal convergirem ali e foi aí que se gizou o filme. Uma parte foi filmada…ou quase todo… foi feito ali, em Brazzaville. Os atores são militantes do MPLA. Há um miúdo, que se chega ao balcão, que é o general Paulo Lara, o filho do Lúcio Lara, e que agora é um “mais-velho”.
JP – Chegaste a conhecer a Sarah Maldoror?
Luandino Vieira: Sim, penso que foi em Paris…
JP – E qual foi o papel do Mário Pinto de Andrade como elemento de ligação entre os intelectuais de Angola e o ativismo em Paris? O que estou a ver é que há uma circulação, uma ligação, entre a Présence Africaine, Paris, os intelectuais do CEI (Casa dos Estudantes do Império) no exílio, e os movimentos no terreno.
Luandino Vieira: O Mário, naquela altura, ou era secretário geral ou presidente do MPLA. Naquela altura (do filme), não sei bem. Quando conheceu a Sarah não sei. Ele já estava em Paris. O MPLA sempre teve gente em Paris. Aí conviviam os das colónias portuguesas e os das colónias francesas, naquele tempo uns já independentes e que deram todo o apoio (às lutas de libertação), como se pode ver no livro de correspondência do Lúcio Lara, e alguns estavam na Alemanha e outros em Inglaterra.
JP – Então havia uma rede no exílio…
Luandino Vieira: Havia uma rede… havia correspondência entre todos e a ação política era concertada. Havia uma espécie de escritórios, que se chamavam “bureaus”…
A Sarah, penso que a conheci quando fui a Paris na altura em que se lançou a tradução do meu livro Nós os do Makulusu, portanto já depois da independência.
JP – Na edição que eu tenho do teu livro A Vida verdadeira de Domingos Xavier, referes que os teus livros circulavam na clandestinidade e que muitas vezes eram edições não autorizadas. Então tu não controlavas o processo?
Luandino Vieira: Em tudo isto eu não controlei nada. Tudo isto que eu sei, só depois da independência. Tudo o que contribuísse um pouco para o avanço da luta de libertação era feito, e obviamente não era preciso estar a pedir autorização a ninguém.
JP – Como é que tu vês os filmes de Maldoror enquanto obra de arte e não tanto como forma de militância?
Luandino Vieira: Eu gostei… Bom, isto são impressões de 1976, 1977, e contrariamente a outras opiniões eu gostei bastante do que ela fez. O primeiro, o Monagambé, a preto e branco, não sei se foi em 16 milímetros, era ainda um filme, do ponto de vista cinematográfico … Os outros que o viram comigo diziam que era um filme muito ingénuo, muito rudimentar. E acho que isso corresponde um pouco à própria história (escrita), que é uma história muito ingénua e muito rudimentar
JP: Mas ela é uma cineasta que está a começar e que não tinha assim muitos recursos! Também é um bocado injusta essa visão…
Luandino Vieira: Recursos não havia! E isso da justiça ou injustiça é uma questão de contexto. Se é uma obra de arte… não creio que seja uma obra de arte aquele filme; mas do ponto de vista cinematográfico parece-me ter mais unidade de estrutura e de desenvolvimento artístico do que o Sambizanga, que já é um filme com um guião mais complexo, já são muitas mais personagens e os locais em que se passa a ação, logo é mais difícil articular tudo isto de uma forma que seja fluida do princípio ao fim. Agora com os poucos meios que a Sarah teve para fazer o filme Sambizanga… basta ver que os atores são quase todos guerrilheiros e gente dali da base de Dolisie… a actriz … a…
JP: A Elisa Andrade
Luandino Vieira: Era a companheira do general Katyana[1]… Ela dá, no filme, o que eu acho que deveria ter dado como título ao livro, porque o livro naquelas circunstâncias e naquele momento histórico, e como contribuição para a luta de libertação (que era a que eu podia dar: escrever), o título e o desenrolar da ação dão a aparência de que é a história do Domingos Xavier, mas o Domingos Xavier morre aí a dois terços do livro. O livro, no fundo, é a história daquela mulher! Do princípio até ao fim.
JP: Exacto! Concordo totalmente.
Luandino Vieira: É verdade que o ator que faz de Domingos Xavier, que era o Domingos Oliveira, e que era mesmo assim, ele “enche a cena”, e mesmo que ela o quisesse pôr em segundo plano, é difícil com aquele ator, com aquela presença física. O que vale é que a Maria também, a atriz (a Elisa) tem muita presença. Portanto, numa primeira leitura, o filme mais do que o livro, favorece a representação da ação da mulher, a Elisa.
JP: Na altura, nos anos 70, lembras-te do impacto internacional que teve o Sambizanga?
Luandino Vieira: Não. Mesmo depois, quando cheguei a Lisboa e estava lá com residência vigiada ou liberdade condicional (ou lá o que se chama a isso, quer dizer, tinha de ir à PIDE todas as semanas para porem o carimbo numa caderneta), quando houve o “25 de Abril” o filme deu muita discussão, controvérsia, mas lembro-me que ganhou um prémio no festival de cinema de Cartágo[2]…
JP: Queria voltar um pouco àquela questão que afloraste, porque o Estado Novo proibiu os teus livros e, pelos documentos que me enviaste, também proibiu a exibição do filme. Gostaria que falasses um bocadinho das práticas da censura nesta tua longa experiência. Nem filme, nem livros, nem nada, não é?
Luandino Vieira: Nós estávamos habituados a isso lá em Luanda! Em Luanda, quando ainda éramos muito novos, fizemos o jornal “Cultura II”. Tomamos o velho jornal da Sociedade Cultural de Angola e voltamos a fazê-lo nos anos 58, 59 ou 60. E aí já estava a censura completamente instalada, a PIDE instalada, e percebíamos muito bem. Às vezes fazíamos duas versões, mandávamos uma à frente, que era para o choque dar os cortes todos, e depois quando íamos com a outra versão, ele já não via aquilo da mesma maneira porque sabia que tínhamos seguido as indicações da censura, corta aqui, corta ali… e às vezes… passavam. Estou-me a lembrar de uma página grande sobre poesia angolana em que nós não mandamos as gravuras, que eram uns linóleos, e a censura cortou, e nós publicamos os linóleos em lugar dos poemas, e passou, e se calhar os linóleos ainda eram piores do que os poemas, mas enfim.
Mas ainda durante aquilo que os portugueses chamam “a era marcelista”, em que houve uma certa distensão, uma certa abertura, ou pelo menos dizem que houve, o meu editor – que era também o único que ousou dar-me trabalho quando eu saí do Tarrafal (não encontrava emprego em lado nenhum), e esse editor, o Joaquim Soares da Costa, das Edições 70, deu-me emprego ali, e nessa altura, quando houve a dita abertura, ele ousou fazer uma nova edição do Luuanda… Foi logo apreendida. E estava um recurso pendente em tribunal, não sei que tipo de tribunal, quando houve o 25 de Abril, e pronto. Quer dizer que já muito perto (do fim da ditadura) ainda houve essa censura sobre o livro Luuanda. Não estou a falar da Vida Verdadeira de Domingos Xavier porque esse ele não se atreveu a publicar antes do 25 de Abril.
JP: Eu li que na altura se criticou o filme Sambizanga por não ser suficientemente ativista, não ser suficientemente comprometido. Tu não tens essa posição? Concordas com isso? Também é uma reação da altura, que tem de ser enquadrada historicamente…
Luandino Vieira: O livro só conta a história de um militante naquele meio socio-político de Angola, nos anos que antecederam o início da luta armada. Portanto, é um caso concreto. Agora, o filme… a Sarah quis ser fiel ao livro, demasiado fiel até ao fim, e quando chegou ao fim… O filme desenrola-se sobre uma história vulgar, banal, naquele contexto, com aquelas personagens, naquela época histórica. Era banal ser preso, era banal ser morto. Tudo aquilo era o dia a dia. Mas no fim, ela (Sarah Maldoror), para o filme ficar, como tu dizes, mais ativista, mete aquele plano, que está justificado porque todo o livro se passa junto ao velho Kwanza, e quase todos os cenários são do rio, mete aqueles planos finais do rio de águas revoltas a virar tudo…
JP: Que é uma metáfora da revolução.
Luandino Vieira: Pois, que era o 4 de fevereiro que estava a chegar… Eu não sei se em voz off ela diz isso …
JP: Sim, sim, refere-se o 4 de fevereiro numa imagem final.
Luandino Vieira: Já não me lembro. Já lá vão quase 60 anos!
JP: Havia mais mulheres a trabalhar na altura no cinema africano, além da Sarah Maldoror?
Luandino Vieira: Não sei. Eu do cinema africano conheço muito pouco, mesmo quando depois mais tarde estive na fundação do Instituto Angolano de Cinema, saí quando íamos começar uma ação de maior relação com outras cinematografias através da Cinemateca Nacional, que era uma instituição do nosso instituto, mas eu só contactei com um cineasta africano, de quem depois fiquei amigo, que foi Ousmane Sembéne. Mas foi como escritor que nos encontramos em Frankfurt. O Ousmane Sembéne era uma grande cineasta, e o Paulino Vieira, do Senegal…
Quando íamos começar mesmo a entrosar o cinema angolano com o novo grande cinema africano, bom, as condições da guerra civil não permitiram o desenvolvimento do cinema angolano e ficamos por aí. Hoje não sei como está.
JP: Queria terminar a parte relativa ao cinema com uma pergunta que diz respeito às políticas das cinematecas hoje. As cinematecas tendem a preservar o original de 35 milímetros, que está em roldanas, e que não é facilmente transportável, o que não permite que outros públicos cheguem até ao filme. Tu não achas que se deviam digitalizar esses filmes que são a história do cinema, por exemplo para um público de Angola ou Moçambique? As gerações mais jovens não deviam ter acesso a esses filmes?
Luandino Vieira: Estou inteiramente de acordo. Enquanto não houver um acesso fácil às produções culturais em todas as áreas que foram feitas ao longo dos séculos, não estamos numa linha de progresso. Não é preciso estar a inventar todos os dias a roda. Muitos cineastas conseguem, e ainda bem, de moto próprio, repetir coisas que se tivessem frequentado a ditas cinematecas teriam dito: “Oh diabo! Já alguém fez isto! Já alguém disse isto!”. Honra, a quem consegue todos os dias reinventar os irmãos Lumiére.
Agora, na minha opinião… isto no caso de Angola – em Portugal penso que já não é assim – tem de haver uma separação nítida entre o que são os arquivos, que são estruturas que precisam de tecnologias e condições caríssimas para poder preservar esses documentos históricos, falando só sobre cinema, mesmo a partir do momento em que se passou a digital, porque os originais em digital (também) vão levantar problemas de conservação… É verdade que a velocidade de reprodução é praticamente infinita…
JP: Sim, mas a questão aqui é a acessibilidade! Só quem for à cinemateca…
Luandino Vieira: É separar o que é dos arquivos. Os arquivos se cumprirem a sua função de preservar e preparar para difundir, depois as cinematecas fazem… As cinematecas são organismos de ação cultural, não são organismos de recolha de arquivos.
JP: Acho muito bem, e acho que é importante levantar essa questão.
Luandino Vieira: Por exemplo, às vezes penso, bom, vou morar, vou sair, vou para Lisboa, porque custa-me um bocado estar longe do cinema. Lisboa, porquê? Os portugueses podem considerar insuficiente, ou a precisar de renovação, seja o que for… Mas o que eu ouço da programação e da ação da Cinemateca Nacional Portuguesa, da Barata Salgueiro, eu se morasse em Lisboa, reformado, passava lá o dia a ver aqueles filmes, a ver aquelas obras que às vezes eles apresentam.
A questão do guardar, tudo quanto… não digo os artistas, tudo quanto o homem produz, que pudesse ser guardado… o tempo depois se encarrega de separar o que vale a pena. Mas o tempo também é muito traiçoeiro. Um século já chega! Um século não chega! Ou… dez dias chegam.
JP: Agora queria mudar de assunto. Queria falar contigo sobre a Alda Lara. Além de escrever, ela teve um papel de dinamizadora cultural na Casa dos Estudantes do Império, não teve?
Luandino Vieira: Sim! Dizem os que frequentavam a Casa dos Estudantes do Império que ela era muito ativa. Ela tinha uma ação pessoal que vinha da formação católica. Era uma pessoa atenta aos problemas dos desprotegidos e seguramente através da ação católica fazia a sua ação social. Como estudante e como artista ela era a principal animadora das ações culturais da Casa dos Estudantes do Império dizendo poesia. Ela declamava.
JP: Então ela era popular nesse meio.
Luandino Vieira: Eu não frequentava a Casa dos Estudantes do Império. Quem mo dizia era o António Jacinto que era muito amigo dela. Ficamos os dois destroçados, na cadeia, quando soubemos a notícia da sua morte.
JP: Achas que houve alguma marginalização da obra dela por ser muito confessional ou muito católica?
Luandino Vieira: Não.
JP: Sei que a poesia dela também não se enquadra na Negritude. Não foi, por exemplo, incluída nos Cadernos de Poesia Negra de Expressão Portuguesa.
Luandino Vieira: Mas aí também só estão três: Agostinho, Viriato, Jacinto.
JP: De mulheres, está por exemplo a Noémia de Sousa.
Luandino Vieira: Sim, mas ela é de Moçambique. Refiro-me à contribuição de Angola. O Mário foi buscar, e muito bem, o três que podiam estar ali. Aliás contrariando os clichés africanos da “Negritude”, porque, repara, o caderno abre com quem? Guillén!
JP: Porque é que, aparentemente, as ideias da negritude depois são postas de parte?
Luandino Vieira: A “Negritude” cumpriu a função necessária, num momento histórico preciso. Vou dizer de uma forma muito simplificada: “A sua função foi a reivindicação da cultura negra a um mundo mais que eurocêntrico, ‘white-centrico’!
JP: E depois foi preciso explorar outros caminhos?
Luandino Vieira: Mesmo que não quisessem, o processo histórico levava a isso. A Présence Africaine teve um papel importantíssimo no despertardessa consciência. O papel de consciencialização ninguém lho tira! O seu papel como forma de luta, também ninguém lhes tira. E também um papel aglutinador, porque havia muitas correntes dentro do movimento. Para mim, a “negritude” é o Cesaire. Para o Mário, era o Senghor. Para outros será Leon Damas…
O que me cativa em Cesaire é a forma como procurou demonstrar a dificuldade em separar raça de classe. O Fanon já trouxe um outro tipo de contributo.
Só estes nomes já serviam para demonstrar a vitalidade que a “Negritude” teve em tudo. E a influência da negritude ainda hoje está viva, nos debates da União de Escritores, no movimento LevARTE, no movimento ‘Literagris’ dos mais jovens… Algumas coisas muito incipientes, mas há ali a “negritude” como um dos legados que lhes ficou dos mais-velhos.
No caso das antigas colónias portuguesas, a particularidade de se conseguir a independência pela via da luta armada levou a um radicalizar de posições, mas isso também permitiu entender, mais tarde, as questões culturais de uma outra maneira.
JP: Sei que tiveste um papel de direção na televisão angolana. Quais eram as funções da televisão de Angola quando começou a funcionar depois da independência?
Luandino Vieira: A mim puseram-me como diretor numa fase de instalação da televisão angolana. Não havia nada. Começamos a trabalhar com os equipamentos que a RTP pôs de lado, a preto e branco. A função da televisão naquela época era afirmar a soberania nacional e fazer a educação para o mundo que íamos enfrentar através da televisão. Era propaganda e educação. O entretenimento era sobretudo para as crianças; os programas infantis, de produção própria, e desenhos animados, que importávamos. Isto em 75, 77, 78. Depois, sobretudo depois da morte de Agostinho Neto, a televisão tornou-se, por um lado, mais afunilada, e por outro, mais alargada. O fundamental eram os telejornais, o noticiário, e depois os programas que tentavam retratar a realidade socio-económica-cultural do país. A questão era quase devolver a realidade de Angola aos angolanos, porque quem estava num sítio não sabia o que se passava no outro. Angola é muito grande, e o problema era que sempre que tentávamos pôr repetidores dos emissores, a UNITA deitava as torres dos emissores abaixo. Aquela guerra não era a pedir licença…
JP: Dado que Angola tem várias línguas e várias etnias como é que vocês se organizavam? Traduziam? Tinham programas em várias línguas?
Luandino Vieira: A Rádio Nacional, desde o início, tinha programas em cinco, seis línguas. Na televisão, assim que tivemos meios para essa produção, também começamos a fazer programas em várias línguas. Hoje, a televisão internacional de Angola é na língua nacional de difusão internacional que é o português, mas internamente há programas em pelo menos seis línguas que são aquelas que já estão estudadas. A partir do ano dois mil, dois mil e tal, vi que tudo isso está em marcha de uma forma estruturada. Só falta introduzir as várias línguas nacionais no ensino. Pode ser que eu ainda veja …
JP: Se tivesses de fazer uma genealogia do contributo das mulheres para a literatura de Angola que nomes te ocorriam?
Luandino Vieira: Há muitas mulheres a escrever agora! Mas começando pelo início… as Cartas dos Reis do Congo, o Cadornega, Lima… no século XIX, já com a introdução na imprensa, não me lembro de ter visto grande colaboração nas letras, e depois, bom, nos Almanaques luso-brasileiros do final do século XIX e princípio do século XX já há vários nomes de mulheres, em pequenas coisas, e eram sobretudo de Cabo Verde. De Angola, o primeiro nome que me surge é de facto a Alda Lara. A União de Escritores Angolana tomou consciência de que era preciso ver a questão das mulheres. O Manuel Rui, honra lhe seja feita, chamou a atenção para a poesia da Ana de Santana, que eu não sei se continua a publicar, e que se deixou é uma pena. Na altura havia três poetas: A Ana Paula Tavares, que continua, a Ana de Santana, e uma médica que depois deixou de escrever. Mas havia mulheres que tinham coisas na gaveta como a Cecília Paes. E colaboravam várias nos jornais. Tentaram inclusivamente fazer um suplemento infantil, e tentavam fazer passar ideias progressistas no meio daquelas coisas para as crianças. As mulheres estiveram sempre empenhadas, a visibilidade é que era pouca.
JP: Não havia mulheres a escrever a chamada “literatura de guerrilheiro”?
Luandino Vieira: A que chegou mais longe em termos de expressão literária foi a Deolinda Rodrigues, guerrilheira e escritora.
JP: E a Alexandra Dáskalos?
Luandino Vieira: É da geração da Ana Paula Tavares, da Ana de Santana. Nós publicamos umas quatro ou cinco mulheres dessa geração entre 1980 e 1990. Agora, já foi possível publicar uma antologia só de poesia feminina, pelo movimento LevARTE. O problema é que a partir do momento em que se desenvolveu em Angola a possibilidade de edição gráfica, depois de 2002, o parque gráfico tem outra possibilidade de imprimir, mas as jovens do LevARTE já publicam online e podem trocar as suas experiencias online, mesmo se espalhadas pelo país. Era diferente no tempo dos Novos Intelectuais de Angola, em que nos reuníamos no mesmo sítio, fisicamente, para colaborarmos. Hoje em dia o movimento é o mesmo, mas com outros meios. Antes era diferente. Lembro-me que mostrei um poema ao António Jacinto e ele levou-me à biblioteca e disse “lê isto!”. Era As Vinhas da Ira, e depois percebi… O Jacinto era um grande leitor, e fundou com o Viriato e o Mário António o Partido Comunista de Angola, e eles tinham muito boas bibliotecas e recebiam livros…
JP: Como chegavam os livros? Como se contornava a censura?
Luandino Vieira: Havia uma livraria no Lobito-Benguela que conseguia, não sei como, ter os livros do Jorge Amada.
JP: Que foi uma grande influência em ti.
Luandino Vieira: O Jorge Amado foi uma grande influência em todos os escritores da geração de 50, mas o Jorge Amado era a figura aglutinadora. Nós lemos em simultâneo a Rachel de Queiroz, o Erico Veríssimo, o Graciliano, as Memórias do cárcere circulavamclandestinamente, tal como Os Subterrâneos da Liberdade[3]. A Lygia Fagundes Telles… Também revistas brasileiras como O Cruzeiro (1928-1975) e a Manchete (1952-2000) tiveram um papel importante. O grupo que estava em Portugal, em Coimbra e em Lisboa, mandava para baixo (para Angola) as edições doNovo Cancioneiro, da coleção Sob o Signo do Galo, a Editorial Inquérito, a Biblioteca Cosmos, que quando não era permitido à colónia importar aqueles livros – os livreiros não se queriam sujeitar a encomendar um livro que não podiam pôr à venda – só se conseguia chegar aos livros de uma outra maneira. Havia um livreiro que mandava vir isso, ao estilo da livraria Barata em Lisboa, que tinha livros que só se vendiam debaixo do balcão, a quem estivesse devidamente “credenciado”.
JP: Falemos agora um pouco das artes visuais. Que pintora angolana destacarias?
Luandino Vieira: Entre aspintoras angolas, a Delmira, mas havia uma francesa, Denise Toussaint, que esteve em Angola. Havia também um núcleo surrealista: o Cruzeiro Seixas, o Margarido e Soares Guedes. Fizeram uma exposição nos anos 50. Foi um escândalo. Fizeram uma exposição surrealista numa casa em ruínas, e tiveram o topete de convidar o Secretário Geral do Governo, e ele foi lá, para inaugurar aquilo. Pelos desenhos e pelas pinturas do Cruzeiro Seixas pode-se ver o que era aquilo. E eles foram corridos da colónia, mas a exposição deixou marca lá em Luanda. Nós, os miúdos, íamos vendo aquilo, bem… Era na parte dos colonos. Mas falando mais tarde com gente da Liga, da Anangola, da Associação dos Naturais de Angola (comentava-se): “Não, a gente viu aquilo!” – Era afrontar a ordem colonial.
O Cruzeiro e o Margarido…são conhecidas as posições do Margarido na análise da literatura angolana e na atividade que desenvolveu na Casa dos Estudantes do Império, com aquelas antologias todas que ele ajudou a organizar e para as quais escreveu os prefácios. Penso que na Antologia da Poesia Angolana o prefácio é dele. Foi publicado Angola, Moçambique, creio que de Moçambique foram duas, S. Tomé… Naquele tempo, essas associações, dentro das condições e dos condicionalismos que tinham, fizeram muito. É verdade que hoje se faz muito mais, mas é de tal maneira fragmentado! … Mais vale cair um nevão do que uma camada de granizo.
[2] O filme Sambizanga ganhou o primeiro prémio, o “Tanit d’ Or”, do Festival de Cinema de Cartágo em 1972. Em 1973 ganhou 2 prémios no Festival Internacional de Cinema de Berlim.