Entrevista Ana Clara Guerra Marques (por Marie-Manuelle Silva)

Ana Clara Guerra Marques é Mestre em Performance Artística – Dança, com a tese «Sobre os Akixi a Kuhangana entre os Tucokwe de Angola: A performance coreográfica das máscaras de dança Mwana Phwo e Cihongo», pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa.

Licenciou-se em Dança – Especialidade de Pedagogia, pela Escola Superior de Dança de Lisboa do Instituto Politécnico de Lisboa.

É autora dos livros “A Alquimia da Dança” (1999), “A Companhia de Dança Contemporânea de Angola” (2003), “Para uma História da Dança em Angola – Entre a Escola e a Companhia: Um Percurso pedagógico” (2008) e “Máscaras Cokwe: A linguagem coreográfica de Mwana Phwo e Cihongo” (2017).

Iniciou os seus estudos em dança na Academia de Bailado de Angola em 1970 e, em 1978, passou a dirigir a única Escola de Dança existente no país, atividade que desenvolveu a par da docência.

Da sua estratégia para a defesa e projeção da dança, enquanto linguagem artística e arte performativa em Angola, fazem parte a sua prática como bailarina e coreógrafa, fundando em 1991 a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, a primeira companhia profissional em Angola (e uma das primeiras em África).

A Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC Angola) foiconstituída em 1991 nas então estruturas do Ministério da Cultura, designada durante os dois primeiros anos como Conjunto Experimental de Dança (CED).

A companhia profissional independente, única em Angola (a quarta fundada no continente africano), constituída por bailarinos angolanos por si formados, foi desenvolvendo uma linha de trabalho singular. As peças criadas confrontam o público com as suas próprias histórias, aspetos do seu quotidiano, das suas realidades sociais, da sua condição de cidadãos de universos que se cruzam numa época em que as barreiras geográficas e culturais são superadas pelos recursos que nos disponibilizam as novas tecnologias. Estas, combinadas com outras linguagens, passaram a integrar os discursos artístico e estético da CDC Angola, onde o corpo e o movimento constituem o elemento catalisador.

A partir de estudos de investigação efetuados em várias regiões de Angola, Ana Clara Guerra Marques foi propondo diferentes vocabulários e novas linguagens, no âmbito das suas pesquisa e experimentação, apresentando outras possibilidades para a revitalização da cultura de raiz tradicional. Tem vindo, simultaneamente, a deslocar a dança para espaços não convencionais, levando o público a descobrir diferentes formas e conceitos de espetáculo, alguns em parceria com importantes nomes da literatura e das artes plásticas angolanas, entre os quais Manuel Rui Monteiro, Artur Pestana Pepetela, Frederico Ningi, Carlos Ferreira, Jorge Gumbe, Mário Tendinha, Francisco Van-Dúnem, Masongi Afonso, Zan de Andrade e António Ole.

A utilização da dança como meio de intervenção e crítica social, expondo o ser humano enquanto cidadão do mundo e protagonista da cena social angolana, está na base do trabalho da Companhia, que deu origem à rutura estética e formal da dança angolana, e que luta desde a sua criação contra os mais diversos obstáculos decorrentes da sua existência, num terreno conservador, fortemente cunhado pela quase ausência de um movimento de criação de autor ao nível da dança, praticamente absorvido pelas danças populares e recreativas urbanas.

A CDC Angola resiste numa condição de sobrevivência sem qualquer tipo de apoio institucional, mas, apesar das adversidades, e consciente da importância da sua missão inovadora, aponta novos olhares sobre a dança, tornando-se em 2009 uma companhia de Dança Inclusiva, pela integração de bailarinos portadores de deficiência física.

1 – Pode descrever-nos como se iniciou o seu percurso na dança?

R. O meu contacto com a dança deu-se, ainda na Angola colonial, através da Academia de Bailado de Luanda, que era a única escola profissional existente em Luanda. Tinha 8 anos de idade. Depois da independência, o ensino da dança em Angola foi retomado pelo estado e inscrevi-me na Escola da Dança do então Conselho Nacional de Cultura. Um ano e meio depois, era indicada para dirigir essa mesma escola, pois a professora / directora havia partido para Portugal. Começou aqui a minha “missão” na luta pela profissionalização da dança em Angola.Tinha eu 15 anos de idade.

2 – Qual era a posição da mulher na dança na época em que começou a trabalhar?

R. Eu comecei a trabalhar no início de vida de um país, onde a luta pela igualdade de classes e pela emancipação da mulher eram duas das metas traçadas. A dança existia apenas na sua forma patrimonial / tradicional e popular, onde as diferenças de género eram determinadas pela própria estruturação socio-cultural de cada grupo etno-linguístico. A dança, na sua dimensão teatral e profissional não existia. Portanto, estava nas minhas mãos instituir, antes de tudo, a dança nos seus planos pedagógico (enquanto directora e professora da única escola do país) e cénico (enquanto bailarina e coreógrafa).
Digamos que eu estava numa situação de “Pole position”, mas sem companheiros de “corrida”!

3 – Veio a abordar questões relacionadas com a ditadura no seu trabalho? De que ponto de vista?

R. Antes de mais é importante dizer que o meu trabalho, quer enquanto professora, quer enquanto coreógrafa foi sempre, de algum modo e em simultâneo, condicionado e inspirado por uma certa ditadura. Qualquer ideia ou decisão tinha de ser aprovada / censurada em “instâncias superiores” as quais, na maior parte das vezes, por falta de conhecimento sobre estas áreas mais sensíveis, tinham a mão bastante pesada. Estes impedimentos e policiamentos constantes passaram a ser recorrentes enquanto material de inspiração para o meu trabalho criativo. Enquanto coreógrafa utilizo frequentemente o humor para retratar personagens e contextos quase reais, colocando o público num desequilíbrio entre o hilariante e o dramático. Esta foi sempre a única forma de sobreviver num ambiente de ideias e conceitos absolutamente espartilhados.

4 – Várias décadas depois do 25 de abril, e desde o contexto que é o seu, há contributos sobre a ditadura, direta ou indiretamente, na dança que contribuam para um melhor entendimento do tempo em que vigorou, entre os anos 30 e os anos 70?

R. No que diz respeito à criação de autor, não. Na então província portuguesa, Angola, a dança profissional não tinha qualquer tradição. Além da Academia de Bailado que era, como acima referido, a única escola de vocação profissional, existiam alguns estúdios particulares com um carácter mais lúdico. Nunca se constituiu uma companhia de dança profissional, à semelhança do que se passava no teatro, por exemplo. Angola foi visitada pelo Ballet Gulbenkian, nos anos 70, o qual se apresentou em Luanda e em mais duas cidades com as usuais peças de repertório como O lago dos cisnes, O quebra-nozes ou o Mandarin maravilhoso. Localmente existiam alguns grupos “folclóricos” cujo enquadramento no CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola) pode considerar-se expressivo no que respeita ao olhar colonial sobre o património cultural locais. O carnaval, manifestação popular, é um dos eventos mais expressivos de leitura da ditadura colonial em Angola, o qual conserva marcas evidentes (principalmente a nível do vestuário e adereços) de uma ocupação europeia. Entre estes grupos existiam alguns (dos quais o mais antigo é o União Operário Kabocomeu) cuja dança característica, a Kazukuta, era uma forma de contestar o regime. Os dançarinos, vestidos com fatos pretos, máscaras de europeu, cartolas, botas e sombrinhas, satirizavam o poder colonial e os seus agentes políticos, em especial a classe do patronato.

5 – Acha que a sua experiência enquanto mulher, mas também enquanto artista influencia a introdução de novas abordagens a estas temáticas (totalitarismos)?

R. Não tanto enquanto mulher, mas enquanto artista alinhada e inspirada por outros colegas em todo o mundo que usam a arte como forma de alerta e intervenção, estou absolutamente convencida de que sim. É da história que as artes e os artistas marcam presença permanente na vanguarda das grandes mudanças e alterações sociais. No mundo actual, onde os movimentos racistas, fascistas, xenófobos, homofóbicos, etc. voltam a ganhar visibilidade, a nossa intervenção volta a ser fundamental.

 6 – Há no seu trabalho em concreto reflexos da questão do papel da mulher na sociedade em relação com a ditadura, com as suas narrativas e com os seus reflexos na contemporaneidade?

R. Sim, há. Nas peças que assino para a CDC Angola o tema do feminino aparece frequentemente, bem como a situação da mulher, sobretudo na sociedade angolana que é fortemente machista. Normalmente preferencio abordagens caricatas mas que mostram bem como a nossa sociedade olha e determina o “ser mulher”. A peça que estavamos a criar (eu e a coreógrafa Irène Tassembédo) antes da pandemia do Covid-19, era integralmente inspirada neste questinamento sobre a construção do “género” feminino. Estas propostas coreográficas são, a meu ver, tanto mais interessantes se interpretadas à luz do facto da Companhia de Dança Contemporânea de Angola ser, há 10 anos, uma companhia masculina e inclusiva e de Angola ter vivido, após a independência, durante cerca de quatro décadas, num modelo cruel de ditadura disfarçada de democracia.

7 – O que considera estar ainda por ser contado no que diz respeito às mulheres e à dança na época da ditadura?

R. A época da ditadura, em Angola, estendeu-se até há bem pouco tempo. Digamos que vivemos duas ditaduras; a colonial e a pseudo-socialista, entretanto transformada em capitalismo desregrado e comandado por máfias cujos tentáculos se estenderam não exclusivamente às esferas política e económica mas, igualmente, às esferas sociais e culturais / artísticas. Temos de continuar a colocar pedras neste caminho de fazer da dança uma “arma” de denúncia e combate, na esperança de que outras pessoas saiam da letargia do entretenimento, ganhem coinsciencia e tenham a coragem de o trilhar.

Luanda, 28 de Junho de 2020

Ana Clara Guerra Marques

Fotos de Rui Tavares cortesia Ana Clara Guerra Marques

Vídeo cortesia Ana Clara Guerra Marques

História da Companhia de Dança Contemporânea de Angola (cortesia Ana Clara Guerra Marques)