
Imagem: cortesia de Beatriz Leal
Paulistana, radicada em Brasília, a jornalista Beatriz Leal, 35 anos, teve seu livro “Mulheres que mordem”, entre os finalistas do Prêmio Jabuti, o mais importante dado a escritoras e escritores no Brasil, em 2016. Ali, ela explora a experiência da ditadura argentina em uma inevitável aproximação com o Brasil. Beatriz Leal é especialista em relações internacionais e comunicação pública e vive na capital federal do Brasil desde 2004, o que segundo ela deve impactar no seu trabalho como escritora. A autora acredita que a principal relação entre a atual conjuntura política e o seu livro é que ambos são resultantes dos anos que se viveu uma democracia sem esperar que pudéssemos lidar com a violência da nossa própria história. Na entrevista a seguir, ela conta como surgiu a ideia do romance, a partir de uma reportagem da The New Yorker, além de pensar sobre o papel da arte no momento político que seu país e o mundo atravessam.
Sua trajetória como escritora é recente, mas já marcada pela indicação do seu livro para um prêmio importante no Brasil. Como você começou a escrever?
Sempre escrevi como forma de elaborar minhas questões – diários, cartas, etc. Mas não pensava em ser escritora. Em 2012, li uma matéria na revista The New Yorker (Children of the dirty war – Francisco Goldman) sobre as Avós da Praça de Maio, que me moveu a criar o universo do Mulheres que mordem. Quando o romance figurou na lista dos finalistas do Prêmio Jabuti, pensei que talvez eu pudesse, sim, continuar no caminho da literatura. Quando li essa matéria citada, eu já tinha me formado na escola, na faculdade de jornalismo e na especialização em relações internacionais, e nunca tinha ouvido falar das Avós da Praça de Maio (só das mães) e dos sequestros das crianças. Fiquei chocada com minha alienação e/ou falta de formação no assunto. Isso me inquietou demais. Não pensei: “preciso divulgar essa questão e, para tanto, vou fazer um romance”. Mas, da inquietação, as personagens nasceram em mim e a elaboração do romance me foi inevitável.
Que textos, obras sobre as ditaduras argentina e brasileira foram consultados e ajudaram na escrita de Mulheres…? Gostaria que você falasse um pouco sobre a pesquisa que antecede à escrita.
Eu mergulhei no site das Abuelas (https://www.abuelas.org.ar), que disponibiliza muito material – entrevistas com todas as avós que buscam seus netos, entrevistas com netos encontrados. Essa foi minha pesquisa. O filme O Leitor foi uma referência para eu conseguir elaborar o personagem do torturador.
Você recorda outros textos, filmes e obras de arte de artistas mulheres que tenha influenciado a sua pesquisa ou produção?
Durante a fase de pesquisa, não, infelizmente. Eu pesquisei mais a produção das próprias Abuelas, no campo da não-ficção. Mas depois que o livro ganhou certa visibilidade, fui conectada a outras autoras que abordam o tema, cito aqui algumas: Adriana Lisboa (Azul corvo), Luciana Hidalgo (Rio-Paris-Rio), Márcia Camargos (Um menino chamado Vlado), Rosângela Vieira Rocha (O indizível sentido do amor) e Sonia Bischain (Nem tudo é silêncio). No campo da teoria, a prof. Eurídice Figueiredo (A literatura como arquivo da ditadura brasileira) é referência para mim.
Com a eleição de um militar da reserva, o avanço da extrema direita e mais recentemente de um espécie de “invasão” dos militares nesse governo, ocupando muitos cargos, voltamos a falar da ditadura no Brasil. No seu entendimento, qual o papel da arte produzida até aqui para a compreensão do que foi a ditadura brasileira e da urgência de que não se repita isso agora?
Penso que a arte é a melhor forma de elaboração de traumas e recalques coletivos. No caso da literatura, o leitor, quando interrompe outras atividades para ler um livro, ele empresta todo seu aparelho psíquico àquela voz narrativa. Não conheço meio melhor para promoção do exercício da alteridade. Nesse sentido, creio que a literatura que trata da ditadura militar no Brasil (ou na América Latina) é fundamental nesse momento, tanto quanto registro da história, como forma de elaboração do trauma. Só não sei como fazer essa literatura chegar a quem de fato necessita lê-la. Essa é a questão de um milhão de dólares.
A experiência enquanto mulher e também enquanto artista influencia a criação de novas abordagens sobre as ditaduras?
Não me sinto na posição de fazer essa avaliação. Creio que um especialista em literatura comparada poderia responder de maneira mais justa. Sei que o Mulheres que mordem explora bastante o feminino, e penso que minha experiência neste sexo contribui para isso. Mas não sei se pode chegar a ser chamado de “nova abordagem”, quando tomados como referência autores homens.
Em que medida, viver em Brasília agora te faz pensar na ditadura e outros temas políticos? Acha que vai voltar a tratar disso?
Brasília reúne pessoas de todo o país. O sotaque brasiliense, que começa a ganhar seu contorno, é uma ilustração fidedigna desse fenômeno. Viver aqui me faz ter contato direto com nossa história. Com certeza, o fato de morar aqui teve influência sobre mim quando me envolvi com o tema da ditadura militar da Argentina. Não sei se voltarei a tratar do tema ditadura militar especificamente, mas é bem possível que as relações sociais e a política pautem minha literatura no futuro.
Você vê no seu trabalho em concreto reflexos da questão do papel da mulher na sociedade em relação com a ditadura, com as suas narrativas e com os seus reflexos na contemporaneidade?
O Mulheres que mordem é inteiro sobre isso. Há personagens mulheres que questionam o papel da mulher na sociedade da década de 1970, há a protagonista que, vivendo em 2005/06, manifesta os reflexos do que suas antepassadas viveram durante a ditadura. Quando escrevi o livro, não houve uma intenção. Mas esse foi o resultado. Creio que essas questões habitam o meu corpo, os nossos corpos todos.
Que papel poderá ter a arte numa altura em que regimes de tendência autoritária se instalam no Brasil, na Europa, e em que partidos extremistas ganham cada vez mais terreno?
Acho que serão alguns papéis correndo paralelamente. O primeiro é o registro: enquanto tivermos artistas trabalhando ao lado da História, podemos saber que o futuro terá como conhecer o passado. O segundo é o escapismo: para algumas mentes, a única forma de lidar com a dor da realidade é a arte, seja criando-a, seja consumindo-a. O terceiro é a promoção da alteridade: um livro ou um filme que faça o leitor/espectador compreender a dor de determinada minoria contribui muito para a geração da empatia. E, por último, penso que a arte será a melhor forma de elaboração coletiva do trauma social que vivemos presentemente.
Serviço:
Mulheres que mordem, Beatriz Leal. Imã Editorial. 2015.

Imagem: cortesia de Beatriz Leal