Entrevista Raquel Afonso (por Ana Bessa Carvalho)

Nota biográfica: Raquel Afonso é licenciada em Antropologia pela NOVA FCSH (2013-2016), realizou estágio curricular no Museu Nacional de Etnologia com o projecto “Nos Bastidores do Museu: Migração do Arquivo de Imagem em Movimento Referente à Exposição Os Índios, Nós” (2016). Mestre em Antropologia pela NOVA FCSH (2016-2018). Participou no Seminário Memória, Cultura e Devir, sob orientação da Professora Doutora Paula Godinho. Em 2018, ingressou no Doutoramento em Estudos de Género pelo ISCSP/NOVA FCSH/FD-UNL. No mesmo ano, tornou-se Investigadora Integrada do IHC.

1 – Como surge o interesse pelo Estado Novo, em particular sobre a homossexualidade durante este período?

Bom, eu acho que sempre tive interesse por estas temáticas, nomeadamente porque durante a minha adolescência era difícil conseguir “apanhar” alguma coisa, o que sabia chegava-me através de filmes estrangeiros… Mas durante a licenciatura que fiz em Antropologia, as alunas e os alunos têm que elaborar vários trabalhos nas cadeiras que fazem e eu fui sempre aproveitando esses trabalhos para procurar saber mais sobre a comunidade LGBTI. Durante o mestrado (que também fiz em Antropologia) podíamos escolher uma cadeira de opção livre, e optei por realizar uma no Mestrado de Estudos sobre as Mulheres. Mais uma vez, tínhamos que elaborar um trabalho. E escolhi fazer sobre os direitos LGBTIQ+ em Portugal, numa perspetiva diacrónica. Foi aí que percebi que havia imensos estudos sobre a situação legal LGBTIQ+ no país, por exemplo, mas sobre tempos recentes. E que havia uma lacuna no pré-25 de abril, como se não existissem homossexuais na ditadura. Fiz alguma pesquisa e encontrei alguns trabalhos, mas poucos. Sobre o facto de ser crime, doença… Sobre algumas pessoas conhecidas. Mas sobre as desconhecidas nada. Como me apaixonei pelos Estudos sobre Memória (e isso devo-o à minha orientadora, Paula Godinho) decidi juntar os dois assuntos. A homossexualidade (e o lesbianismo) durante a ditadura portuguesa, através do resgate de memórias de pessoas que viveram esse período.

2 – Quais foram os obstáculos que encontraste ao fazer um trabalho de investigação como aquele ao qual te dedicas?

Uma das maiores batalhas que travei durante o período da minha investigação foi mesmo o processo de encontrar pessoas que quisessem falar sobre o assunto. O que eu queria era compreender como é que resistiam no quotidiano os homossexuais das classes mais baixas, porque a sua situação era pior (devido ao tratamento que era dado à homossexualidade, considerando a classe social de cada um). E essas pessoas não as encontrei. Claro que existem, muitas tiveram um casamento heterossexual, com filhos, agora netos… Muitos autorreprimiram-se. Adaptaram-se à norma. E, depois disso, acho muito difícil fazer um «coming out». Os entrevistados e entrevistadas que me falaram da sua vida são pessoas, digamos, de uma “classe média”, desconhecidas do público em geral e consegui-as através de uma gatekeeper, a pessoa que nos abre as portas do terreno. Uma amiga mais velha, que conhecia pessoas mais velhas e me foi indicando algumas. Depois, segui o sistema “bola de neve”, em que uma pessoa me dá o contacto de outra, e assim sucessivamente.

3 – E que conclusões inesperadas ou surpresas surgiram enquanto investigavas?

Olha, sinceramente, acho que uma das grandes surpresas que encontrei foi realmente o facto de ser muito difícil encontrar pessoas com quem falar e, mais ainda, encontrar pessoas que queiram falar. Eu achava que o facto de partilhar uma identidade não-normativa com elas e eles me iria “facilitar” o trabalho. Isso e, claro, garantir o anonimato. Mas, mesmo assim, as pessoas tendem a não querer falar. Outra das surpresas, mas boa, foi o facto de ter conseguido conhecer e entrevistar um número “interessante” de mulheres lésbicas, porque sabia que seria muito mais difícil encontrá-las.

4 – Como selecionaste as pessoas que entrevistaste para o teu trabalho? Foi difícil encontrar pessoas que quisessem contribuir com testemunhos?

Nota que conheci 17 pessoas, só 12 falaram comigo e só utilizo 10 histórias de vida no livro. Tive pessoas que não quiseram falar, assim que souberam a temática que estava a desenvolver, e tive pessoas, que já depois da entrevista realizada, não quiseram participar. Foi difícil. E às vezes desanimador. Mas as pessoas que se disponibilizaram, decidiram fazê-lo porque, e lembro-me bem, me “queriam ajudar”, queriam “dar o seu contributo”, visibilizar uma parte da história que estava na sombra. E essa “disponibilidade”, esse “apoio” que essas pessoas me deram também teve que ver com a relação de confiança que fui estabelecendo com elas nas conversas que tínhamos e numa base de partilha. Eles e elas tiveram que me conhecer primeiro, para eu os conhecer depois.

5 – Ao escolher quem entrevistar, tens em consideração o género de cada pessoa? A experiência das mulheres lésbicas é diferente da experiência dos homens homossexuais durante o Estado Novo?

Bom, eu acho que acabam por ser as pessoas a escolher-me, sabes? É um processo interessante, e lento. Porque não posso chegar ao pé de uma pessoa e ela contar-me a sua história em 10min. É preciso fazer a levedura necessária para criar uma relação de confiança. Dadas as dificuldades em encontrar pessoas que quisessem falar comigo, todas as que apareciam, eu conhecia e tentava entrevistar. Acabou por ser esse o processo, mas tentava sempre contrabalançar, de forma a manter uma “paridade de testemunhos”, digamos assim. Mas claro que tinha uma série de questões apenas direcionadas para homens e outras apenas direcionadas a mulheres. Tanto a opressão como as formas de resistência quotidianas são diferentes para homens e para mulheres. É uma experiência totalmente diferente porque os papéis sociais que se esperavam de uns e de outros eram igualmente diferentes.

6 – Parece haver uma ausência das mulheres em estudos sobre a homossexualidade, talvez pelo domínio da questão masculina nestes estudos ou pelo facto de a dupla invisibilidade da mulher lésbica lhe conferir uma certa facilidade em passar despercebida e ser ignorada. Como entendes a vivência das mulheres lésbicas durante o Estado Novo?

Como sabes, na altura, e no geral, os homens detinham o domínio do espaço público e as mulheres remetiam-se à esfera do privado, da casa. Para os homossexuais e lésbicas isto também acabava por acontecer. Os homens estavam mais na rua, frequentavam mais os locais de encontro para a prática sexual e isso também os fazia mais visíveis. A Polícia tinha conhecimento destes sítios e das práticas sexuais que lá aconteciam e vigiava esses locais, o que também fazia com que os homens fossem mais detidos. As mulheres não tinham urinóis para frequentar e, pelo menos aquelas com quem falei, estavam mais em casa, mesmo que com a sua namorada. Porque aí, ninguém desconfiaria, eram “apenas amigas”. Por isso, o que dizes faz muito sentido. As mulheres lésbicas tinham mais facilidade em passar despercebidas, até porque, eu acho, não eram muito levadas a sério… O lesbianismo fazia parte do reino do não-dito, se não se fala nele, não existe. Como é que duas mulheres poderiam ter uma relação sexual sem um falo? Penso que, por isso (ou seja, a inexistência de um homem e do seu “membro viril”) eram “desconsideradas”. Mas parece-me que acabaram por jogar com esse factor a seu favor.

7 – Planeias um estudo mais aprofundado sobre a questão das mulheres?

Olha, agora estou praticamente a meio do Doutoramento em Estudos de Género, no qual estou a trabalhar a homossexualidade, o lesbianismo e as formas de resistência nas ditaduras ibéricas do século XX, através de uma perspetiva comparativa. Pelo menos nos próximos dois anos, a minha investigação não irá passar exatamente, ou apenas e só, pela questão das mulheres lésbicas. Mas, quem sabe. É algo que me fascina, na verdade. E ainda há tanto por explorar…

8 – No teu trabalho, Homossexualidade e Resistência no Estado Novo, assim como noutros estudos, é afirmado que o fim da ditadura não significou uma libertação para as pessoas LGBTQI+. Podemos falar de um movimento de libertação em Portugal depois da ditadura?

De libertação sexual/da sexualidade? Eu acho que não. Pelo menos não nos anos imediatamente a seguir ao fim da ditadura. Assim que se deu o 25 de abril há dois momentos a assinalar. Um, no 1º de maio, onde surge no Porto um cartaz que diz “Liberdade para os Homossexuais” e outro, a 13 de maio, o Manifesto Liberdade para as Minorias Sexuais, que saiu no Diário de Lisboa. E mesmo em 75, através das entrevistas que fiz, é percetível que houve tentativas de as pessoas se começaram a organizar para discutir a temática, mas que não resultaram. Coletivo só em 1980, mas extingue-se em 1982. E só nesse ano é que a homossexualidade deixou de ser criminalizada em Portugal, imagina. Oito anos após o final da ditadura! Eu acho que o movimento de libertação nasce nos anos 90, mas que estes momentos que te falei, desde o fim do salazarismo, foram as sementes que ajudaram a fazer “rebentar” o movimento LGBTQI+ em Portugal.

9 – De que formas a ditadura influenciou e condicionou a vivência de pessoas LGBTQI+?

Eu acho que as ditaduras influenciam sempre a vida das pessoas que nelas vivem. Mas no que toca à repressão salazarista em relação às sexualidades dissidentes acho que condiciona de forma brutal. Dou-te um exemplo. Eu agora estou a fazer pesquisa de arquivo. Como eu refiro no livro, há uma série de leis que criminalizavam a homossexualidade e foram sendo alteradas/acrescentadas ao longo do tempo. Houve um decreto-lei (o 35042) que metia a PSP a vigiar os homossexuais. Então, os agentes faziam as suas rondas e se vissem alguém mais “amaneirado”/”afeminado”, essas pessoas eram detidas por suspeita de serem “invertidos” e de praticarem “atos contrários aos bons costumes”. Imaginas o choque disto na vida de uma pessoa? Chegavam a ir fazer exames ao Instituto de Medicina Legal, para se provar, ou não, que tinham sido “vítimas de sodomia passiva”. Era uma coisa brutal, digo-te. Para as mulheres, lá está, era menos “agressivo”, porque eram menos visíveis. No entanto, isso condiciona imenso. Ter que estar constantemente atento ou atenta, a olhar por cima do ombro, com medo.

10 – Que ecos encontras hoje dos anos da ditadura no que toca à experiência LGBTQI+? Que obstáculos ainda existem para a igualdade?

Vários investigadores e investigadoras, e incluo-me aqui, consideram que a homofobia durante a ditadura foi tão dura que causou um grande impacto que ainda hoje se reflete. Ainda hoje as pessoas sofrem discriminação. Sem dúvida nenhuma, acho que o maior eco que encontro é a mentalidade homofóbica. É sermos olhadas de lado, ouvir comentários na rua… Aquilo que eu vejo é que, apesar do muito que se conquistou em relação aos direitos LGBTI, a homofobia ainda está (demasiado) presente numa sociedade que se diz democrática. Não só a homofobia, como o machismo, o racismo, a xenofobia… São questões que têm que continuar a ser trabalhadas, trazidas para a praça pública, a gerar discussão… Originar uma educação diferente, mais inclusiva. Isso é muito importante para ajudar uma nova geração a crescer com mais igualdade e menos discriminação.

11 – Como definirias a figura da mulher lésbica durante o Estado Novo?

Com exceções, que existiram, eu acho que a mulher lésbica durante o Estado Novo era uma mulher que se sentia desencaixada dos papéis sociais que lhe eram atribuídos. Eram mulheres que arranjavam formas de resistir à heteronormatividade e ao patriarcado, mesmo que essas formas fossem veladas. Eram mulheres que se queriam encontrar, perceber o que sentiam, viver a vida o melhor possível.

12 – Como definirias a figura da mulher lésbica agora?

Hoje, acho que as mulheres lésbicas (as mais jovens, pelo menos) reivindicam o seu espaço na vida pública. Lutam pela sua visibilidade e eu considero que a visibilidade é muito importante porque as mulheres lésbicas não têm que estar na sombra de ninguém, seja essa sombra feita por homens ou por mulheres heterossexuais. Nós também lutámos, também estivemos lá. E estamos.

13 – E o movimento feminista de então, e o de agora, em relação às mulheres LGBTQI+?

Olha, eu acho, muito sinceramente, que nos primórdios do movimento feminista se tentou, de certa forma, “esconder”, ou mesmo “apagar”, a existência das mulheres lésbicas das suas fileiras, porque não era bom para a imagem do movimento. Acho que hoje ainda continuamos ofuscadas pelo (pelo menos) duplo estigma, de sermos mulheres e de sermos mulheres lésbicas. Mas sinto que estamos a tentar alterar isso, porque as lésbicas também se querem fazer ouvir e fazem por isso. As lésbicas e não só. Acho que o movimento feminista atual está, cada vez mais, a lutar por um feminismo intersecional, que dê conta das diferentes experiências das mulheres, sejam elas negras, lésbicas, cis, brancas, trans. E isso é muito importante, porque um movimento que luta pela igualdade também tem que se pautar pela inclusão e não-discriminação.

Bibliografia

Afonso, Raquel. Homossexualidade e Resistência no Estado Novo. Ourém: Luz Elétrica, 2019.